Jejum e Abstinência: Como, porquê e para quê?

Jejum e abstinência são, antes de tudo, formas de penitência e instrumentos de conversão que Cristo e a Igreja nos propõem em especial neste tempo da Quaresma. São oportunidades para nos tornarmos melhores, para repormos equilíbrios perdidos na nossa vida. Toda a penitência constitui também uma forma de união ao Mistério da Cruz. Com Jesus, morremos para o que nos faz mal e preparamo-nos para a Vida verdadeira que Ele nos oferece.

Muitas vezes, jejum e abstinência são práticas muitas vezes confundidas entre si, por ambas dizerem respeito, na origem, à alimentação. Tradicionalmente, fazia-se jejum limitando a alimentação diária a uma refeição, embora não se excluísse que se pudesse tomar alimentos ligeiros às horas das outras refeições.

Durante muito tempo, a abstinência traduzia-se em não comer carne, alimento tradicionalmente mais caro e conotado com ocasiões festivas. A industrialização da produção de carne tornou-a mais acessível em termos de preço e de disponibilidade no dia a dia. Ao mesmo tempo, certos peixes e mariscos tornaram-se alimentos de luxo, pelo custo e raridade. Até uma dieta vegetariana pode mais dispendiosa.

Mais importante do que aquilo que comemos é o espírito com que o fazemos. A abstinência deve ser entendida como privação voluntária de alimentos requintados e saborosos (ou que sejam os nossos favoritos, independentemente do preço e sofisticação), em favor de uma alimentação mais simples e pobre.

Somos convidados ao jejum em dois dias: na Quarta-Feira de Cinzas, primeiro dia da Quaresma, e na Sexta-Feira Santa, ocasião em que contemplamos a Paixão e Morte de Jesus. 

A abstinência é praticada em todas as sextas-feiras da Quaresma. A Igreja propõe que seja estendida a todo o ano, com exceção de datas que a Liturgia considera solenidades.

O jejum e a abstinência podem ser entendidos de forma mais abrangente, para lá do simples contexto da alimentação. Na Carta aos Filipenses, diz-nos São Paulo: “Sei passar por privações, sei viver na abundância. Em toda e qualquer situação, estou preparado para me saciar e passar fome, para viver na abundância e sofrer carências. De tudo sou capaz naquele que me dá força”. (Fil 4, 12-13). Não é a simples falta ou fartura de algo que faz de nós melhores ou piores seguidores de Cristo!

A prática da moderação é sempre virtuosa, à mesa e não só. Além das questões da saúde, os prazeres e alegrias da vida são legítimos desde que fundados numa relação equilibrada com Deus e com os outros. Os abusos acabam sempre por nos condicionar e prejudicar, a nós e aos que vivem connosco. Jejuar e praticar a abstinência são formas de pormos à prova as nossas dependências, os nossos apegos. Se como ou bebo em excesso, fazendo dos momentos à mesa o centro da minha vida, preciso de fazer mudanças profundas. O mesmo é válido para outros hábitos: o uso do telemóvel e das redes sociais, as horas passadas em frente à televisão, a relação com os jogos de sorte e de azar – tudo isso pode ser inocente ou resvalar para o abuso, para a obsessão.

Procuremos também ganhar consciência daquilo que, não sendo em si mau, tão-pouco acrescenta qualquer valor à nossa vida, acabando por ser um desperdício de tempo e energia.

Até nas coisas aparentemente mais saudáveis podemos cair em excessos nocivos: o desporto e o exercício físico, por exemplo, são recomendáveis para quase toda a gente, em função da sua idade e condições físicas, mas é comum vermos pessoas completamente dedicadas ao culto do corpo, da juventude e da beleza, ou obcecadas com superar os seus próprios limites, num jogo de fuga ou vaidade em que não estão a vencer, muito pelo contrário.

A moderação e a privação voluntária de algo, definitiva ou não, são formas de exercitarmos a nossa liberdade e autodomínio, e de avaliarmos o estado da nossa relação com as pessoas e com as coisas. Muitas vezes, temos hábitos tão enraizados que só percebemos que são maus quando experimentamos interrompê-los. Há quem não passe sem vários cafés diários ou sem um copo de vinho a todas as refeições. Há quem fique surpreendido com o tempo que passa a olhar para o telemóvel, a navegar na internet ou a assistir a programas televisivos sobre o seu desporto preferido.

Há hábitos que são verdadeiros vícios. Uns, mais óbvios: o alcoolismo, o tabagismo, as toxicodependências. Outros vícios, como lembrava o Papa Francisco há alguns anos, são mais discretos, mas nem por isso menos nefastos. Sem dar por isso, posso ser viciado no interesse ilegítimo e desproporcionado na vida alheia e na pura maledicência. Ou na inveja.

Posso ter-me viciado em andar sempre com o tempo contado: saio de casa demasiado tarde para o trabalho, para a escola ou outros compromissos, deixo as pessoas sistematicamente à minha espera, faço uma condução perigosa…

Talvez tenha como vício uma certa atitude de vitimização e dependência crónica da ajuda alheia, abusando da boa-vontade dos outros.

Neste sentido, a penitência e, em especial, o jejum e a abstinência podem ajudar-me a combater os meus defeitos, os meus pecados “de estimação” (aqueles que parece que já fazem parte de mim, da minha identidade e das minhas rotinas, que eu já tenho vergonha de confessar uma e outra vez). Sem me privar do necessário descanso do corpo e da mente, posso esforçar-me para começar o meu dia mais cedo, para combater a preguiça e a inércia. Posso fazer jejum de filmes, programas, conversas ou navegações online que alimentam a minha tendência para algum pecado específico. Posso abster-me de certas redes sociais que só me fazem mais vaidoso (ou, pelo contrário, mais inseguro sobre a minha vida ou o meu aspeto físico). Posso olhar de forma crítica para os meus gastos e ver em que é que posso ser mais poupado, menos consumista e até mais amigo do ambiente (prolongando a vida útil das roupas ou do telemóvel, por exemplo).

Há já muitos anos que se desafia os fumadores a aproveitarem a Quaresma para acabarem com o vício, dando o dinheiro que poupam aos mais necessitados. O jejum e a abstinência têm um sentido de renúncia a favor dos outros. As compras que eu evitar fazer neste período quaresmal vão libertar quantias que posso dedicar a uma instituição ou causa nobre. O tempo que eu poupo em frente aos ecrãs pode ser dedicado à oração ou a ir visitar uma pessoa sozinha, idosa ou doente. Parte da comida que eu compro pode ser oferecida à família que sabemos que passa necessidades.

Que novos hábitos e salutares poderei eu descobrir e cultivar? Leitura, desporto, voluntariado?...

Não se trata de cumprir preceitos ou obrigações. E também não queremos fazer as coisas apenas porque são custosas. Não é daí que lhes vem o valor! A penitência quaresmal deve ser vivida com o espírito certo: como uma oportunidade de crescimento pessoal, de aproximação a Deus e aos outros, de fortalecimento da nossa liberdade. Não estamos a bater recordes, nem a tentar impressionar os outros. Escusado será dizer que não se pretende que aproveitemos a aproveitar a Quaresma para uma dieta de emagrecimento ou para poupar para as férias ou o próximo computador!

Também no jejum e na abstinência temos de nos acautelar com um certo orgulho. Tenhamos presentes os ensinamentos de Jesus: “Tu, porém, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto, para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai, que está presente no que é oculto; e teu Pai, que vê o que está oculto, te dará a recompensa" (Mt 6, 18).

A recompensa começa já nesta vida terrena, em forma de saúde, equilíbrio, alegria, paz. E prolonga-se pela Eternidade a que Deus nos chama, todos os dias, em especial na Quaresma e na Páscoa!

 

Lúcio Gomes

Quaresma de 2025