𝟓 𝐝𝐞𝐭𝐚𝐥𝐡𝐞𝐬 𝐪𝐮𝐞 𝐭𝐚𝐥𝐯𝐞𝐳 𝐧ã𝐨 𝐜𝐨𝐧𝐡𝐞ça 𝐬𝐨𝐛𝐫𝐞 𝐚 𝐂𝐨𝐫𝐨𝐚 𝐝𝐨 𝐀𝐝𝐯𝐞𝐧𝐭𝐨

A Igreja se prepara para iniciar o tempo do Advento no domingo, 01 de dezembro. Como é tradição, os fiéis se reunirão para rezar e acender a primeira vela da Coroa do Advento.

Confira a seguir, 5 detalhes que todo cristão deve saber sobre a Coroa.

1. É exemplo da cristianização da cultura

A Coroa do Advento tem a sua origem em uma tradição pagã europeia, que consistia em prender velas durante o inverso para representar o fogo do deus sol e pedir-lhe que voltasse com sua luz e calor.

Os primeiros missionários aproveitaram esta tradição para evangelizar as pessoas e lhes ensinaram que deviam aproveitar esta Coroa do Advento como meio para esperar Cristo, celebrar seu nascimento e lhe pedir que infunda sua luz em suas almas.

2. Sua forma circular é sinal do amor de Deus

O círculo é uma figura geométrica que não tem princípio nem fim. A Coroa do Advento recorda que Deus também não tem princípio nem fim, por isso reflete sua unidade e eternidade. É sinal do amor que se deve ter pelo Senhor e pelo próximo, o qual deve se renovar constantemente e nunca acabar.

3. Os ramos verdes representam Cristo vivo

Verde é a cor da esperança e da vida. Os ramos significam que Cristo está vivo entre nós. A cor verde também recorda a vida de graça, o crescimento espiritual e a esperança que devemos cultivar durante o Advento. O desejo mais importante deve ser querer chegar a uma união mais forte com Deus, nosso Pai, assim como a árvore e seus ramos.

4. As quatro velas representam cada domingo do Advento

As velas permitem refletir sobre a escuridão provocada pelo pecado, o qual deixa o homem cego e o afasta de Deus. Depois da primeira queda do homem, Deus foi dando pouco a pouco uma esperança de salvação que iluminou todo o universo, como as velas da Coroa.

Neste sentido, assim como as trevas se dissipam com cada vela que acendemos, os séculos foram se iluminando cada vez mais com a proximidade da chegada de Cristo ao mundo.

As quatro velas colocadas na Coroa de Advento são acesas semana a semana, nos quatro domingos do Advento e com uma oração especial.

5. Uma das velas é rosa

Tradicionalmente as velas da Coroa de Advento são três roxas e uma rosa, esta é acesa no terceiro Domingo do Advento. Este dia é conhecido também como “Domingo Gaudete”, ou da alegria, devido à primeira palavra do prefácio da Missa: Gaudete (regozijem-se).

A cor roxa representa o espírito de vigilância, penitência e sacrifício que devemos ter para nos prepararmos adequadamente para a chegada de Cristo. A cor rosa representa a alegria que sentimos diante da proximidade do nascimento do Senhor.

Em alguns lugares, todas as velas da Coroa são substituídas por velas vermelhas e, na Noite de Natal, é colocada no centro da coroa uma vela branca, simbolizando Cristo como centro de tudo que existe.

Sugestões

a) Recomenda-se fazer a coroa de Advento em família, aproveitando a ocasião para ensinar as crianças o sentido e o significado de tal símbolo do Natal.

b) A coroa deverá estar em um lugar especial da casa, de preferência onde seja facilmente visível por todos, recordando assim a vinda cada vez mais próxima do Senhor Jesus e a importância de se preparar bem para este momento.

c) É conveniente fixar um horário para se fazer a liturgia da Coroa do Advento de maneira que seja uma ocasião familiar e ordenada, com a participação consciente de todos.

d) Recomenda-se repartir as funções de cada membro da família durante a liturgia. Um acende a vela, outro lê a passagem bíblica, outro faz algumas preces, a fim de que todos possam participar e que seja uma ocasião de encontro familiar.

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO PARA O VIII DIA MUNDIAL DOS POBRES

XXXIII Domingo do Tempo Comum
17 de novembro de 2024

A oração do pobre eleva-se até Deus (cf. Sir 21, 5)

Caros irmãos e irmãs!

1. A oração do pobre eleva-se até Deus (cf. Sir 21, 5). No ano dedicado à oração, em vista do Jubileu Ordinário de 2025, esta expressão da sabedoria bíblica é ainda mais oportuna a fim de nos preparar para o VIII Dia Mundial dos Pobres, que acontecerá no próximo 17 de novembro. A esperança cristã inclui também a certeza de que a nossa oração chega à presença de Deus; não uma oração qualquer, mas a oração do pobre. Reflitamos sobre esta Palavra e “leiamo-la” nos rostos e nas histórias dos pobres que encontramos no nosso dia-a-dia, para que a oração se torne um modo de comunhão com eles e de partilha do seu sofrimento.

2. O livro de Ben-Sirá, ao qual nos referimos, não é muito conhecido e merece ser descoberto pela riqueza dos temas que aborda, sobretudo quando se refere à relação do homem com Deus e com o mundo. O seu autor, Ben-Sirá, é um mestre, um escriba de Jerusalém que, provavelmente, escreve no século II a.C. Radicado na tradição de Israel, é um homem sábio, que ensina sobre vários domínios da vida humana: desde o trabalho à família, desde a vida em sociedade à educação dos jovens; presta atenção às questões relacionadas com a fé em Deus e a observância da Lei. Aborda os problemas nada fáceis da liberdade, do mal e da justiça divina, que hoje são de grande atualidade também para nós. Inspirado pelo Espírito Santo, Ben-Sirá pretende transmitir a todos o caminho a seguir para uma vida sábia e digna de ser vivida diante de Deus e dos irmãos.

3. Um dos temas a que este autor sagrado dedica mais espaço é a oração, e fá-lo com grande ardor, porque dá voz à sua própria experiência pessoal. Efetivamente, nenhum texto sobre a oração poderia ser eficaz e fecundo se não partisse de quem se encontra diariamente na presença de Deus e escuta a sua Palavra. Ben-Sirá declara que, desde a sua juventude, procurou a sabedoria: «Quando eu era ainda jovem, antes de ter viajado, busquei abertamente a sabedoria na oração» (Sir 51, 13).

4. No seu caminho, descobre uma das realidades fundamentais da revelação, ou seja, o facto de os pobres terem um lugar privilegiado no coração de Deus, a tal ponto que, perante o seu sofrimento, Deus se “impacienta” enquanto não lhes faz justiça: «A oração do humilde penetrará as nuvens, e não se consolará, enquanto ela não chegar até Deus. Ele não se afastará, enquanto o Altíssimo não olhar, não fizer justiça aos justos e restabelecer a equidade. O Senhor não tardará nem terá paciência com os opressores» (Sir 35, 17-19). Deus, porque é um Pai atento e carinhoso para com todos, conhece os sofrimentos dos seus filhos. Como Pai, preocupa-se com aqueles que mais precisam dele: os pobres, os marginalizados, os que sofrem, os esquecidos... Ninguém está excluído do seu coração, uma vez que, diante d’Ele, todos somos pobres e necessitados. Somos todos mendigos, pois sem Deus não seríamos nada. Nem sequer teríamos vida se Deus não no-la tivesse dado. E, no entanto, quantas vezes vivemos como se fôssemos os donos da vida ou como se tivéssemos de a conquistar! A mentalidade mundana pede que sejamos alguém, que nos tornemos famosos independentemente de tudo e de todos, quebrando as regras sociais para alcançar a riqueza. Que triste ilusão! A felicidade não se adquire espezinhando os direitos e a dignidade dos outros.

A violência causada pelas guerras mostra claramente quanta arrogância move aqueles que se consideram poderosos aos olhos dos homens, enquanto aos olhos de Deus são miseráveis. Quantos novos pobres produz esta má política das armas, quantas vítimas inocentes! Contudo, não podemos recuar. Os discípulos do Senhor sabem que cada um destes “pequeninos” traz gravado em si o rosto do Filho de Deus, e que a nossa solidariedade e o sinal da caridade cristã devem chegar até eles. «Cada cristão e cada comunidade são chamados a ser instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam integrar-se plenamente na sociedade; isto supõe estar docilmente atentos, para ouvir o clamor do pobre e socorrê-lo» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 187).

5. Neste ano dedicado à oração, precisamos de fazer nossa a oração dos pobres e rezar com eles. É um desafio que temos de aceitar e uma ação pastoral que precisa de ser alimentada. Com efeito, «a pior discriminação que sofrem os pobres é a falta de cuidado espiritual. A imensa maioria dos pobres possui uma especial abertura à fé; tem necessidade de Deus e não podemos deixar de lhe oferecer a sua amizade, a sua bênção, a sua Palavra, a celebração dos Sacramentos e a proposta dum caminho de crescimento e amadurecimento na fé. A opção preferencial pelos pobres deve traduzir-se, principalmente, numa solicitude religiosa privilegiada e prioritária» (ibid., 200).

Tudo isto requer um coração humilde, que tenha a coragem de se tornar mendigo. Um coração pronto a reconhecer-se pobre e necessitado. Existe, efetivamente, uma correspondência entre pobreza, humildade e confiança. O verdadeiro pobre é o humilde, como afirmava o santo bispo Agostinho: «O pobre não tem de que se orgulhar, o rico tem o orgulho para combater. Portanto, escuta-me: sê um verdadeiro pobre, sê virtuoso, sê humilde» (Discursos, 14, 4). O homem humilde não tem nada de que se vangloriar nem nada a reclamar, sabe que não pode contar consigo próprio, mas acredita firmemente que pode recorrer ao amor misericordioso de Deus, diante do qual se encontra como o filho pródigo que regressa a casa arrependido para receber o abraço do pai (cf. Lc 15, 11-24). O pobre, sem nada em que se apoiar, recebe a força de Deus e coloca n’Ele toda a sua confiança. Com efeito, a humildade gera a confiança de que Deus nunca nos abandonará e não nos deixará sem resposta.

6. Aos pobres que habitam as nossas cidades e fazem parte das nossas comunidades, recomendo que não percam esta certeza: Deus está atento a cada um de vós e está perto de vós. Ele não se esquece de vós, nem nunca o poderia fazer. Todos nós fazemos orações que parecem não ter resposta. Por vezes, pedimos para sermos libertados de uma miséria que nos faz sofrer e nos humilha, e Deus parece não ouvir a nossa invocação. Mas o silêncio de Deus não significa distração face ao nosso sofrimento; pelo contrário, contém uma palavra que pede para ser acolhida com confiança, abandonando-nos a Ele e à sua vontade. É ainda Ben-Sirá que o testemunha: “O juízo de Deus será em favor dos pobres” (cf. 21, 5). Da pobreza, portanto, pode brotar o canto da mais genuína esperança. Lembremo-nos de que «quando a vida interior se fecha nos próprios interesses, deixa de haver espaço para os outros, já não entram os pobres, já não se ouve a voz de Deus, já não se goza da doce alegria do seu amor, nem fervilha o entusiasmo de fazer o bem. […] Esta não é a vida no Espírito que jorra do coração de Cristo ressuscitado» (Exort. ap. Evangelii gaudium, 2).

7. O Dia Mundial dos Pobres tornou-se um compromisso na agenda de cada comunidade eclesial. É uma oportunidade pastoral que não deve ser subestimada, porque desafia cada fiel a escutar a oração dos pobres, tomando consciência da sua presença e das suas necessidades. É uma ocasião propícia para realizar iniciativas que ajudem concretamente os pobres, e também para reconhecer e apoiar os numerosos voluntários que se dedicam com paixão aos mais necessitados. Devemos agradecer ao Senhor pelas pessoas que se disponibilizam para escutar e apoiar os mais pobres: sacerdotes, pessoas consagradas e leigos que, com o seu testemunho, são a voz da resposta de Deus às orações daqueles que a Ele recorrem. Portanto, o silêncio quebra-se sempre que se acolhe e abraça um irmão necessitado. Os pobres têm ainda muito para ensinar, porque numa cultura que colocou a riqueza em primeiro lugar e que sacrifica muitas vezes a dignidade das pessoas no altar dos bens materiais, eles remam contra a corrente, tornando claro que o essencial da vida é outra coisa.

A oração, por conseguinte, encontra o certificado da sua autenticidade na caridade que se transforma em encontro e proximidade. Se a oração não se traduz em ações concretas, é vã; efetivamente, «a fé sem obras está morta» (Tg 2, 26). Contudo, a caridade sem oração corre o risco de se tornar uma filantropia que rapidamente se esgota. «Sem a oração quotidiana, vivida com fidelidade, o nosso fazer esvazia-se, perde a alma profunda, reduz-se a um simples ativismo» (BENTO XVI, Catequese, 25 de abril de 2012). Devemos evitar esta tentação e estar sempre vigilantes com a força e a perseverança que nos vem do Espírito Santo, que é dador de vida.

8. Neste contexto, é bom recordar o testemunho que nos deixou Madre Teresa de Calcutá, uma mulher que deu a vida pelos pobres. Esta santa repetia continuamente que a oração era o lugar donde tirava força e fé para a sua missão de serviço aos últimos. Quando falou na Assembleia Geral da ONU, a 26 de outubro de 1985, mostrando a todos as contas do terço que trazia sempre na mão, disse: «Sou apenas uma pobre freira que reza. Ao rezar, Jesus põe o seu amor no meu coração e eu vou dá-lo a todos os pobres que encontro no meu caminho. Rezai vós também! Rezai, e sereis capazes de ver os pobres que tendes ao vosso lado. Talvez no mesmo andar da vossa casa. Talvez até nas vossas próprias casas há quem espera pelo vosso amor. Rezai, e abrir-se-ão os vossos olhos e encher-se-á de amor o vosso coração».

E como não recordar aqui, na cidade de Roma, São Bento José Labre (1748-1783), cujo corpo jaz e é venerado na igreja paroquial de Santa Maria ai Monti. Peregrino desde França até Roma, rejeitado em muitos mosteiros, viveu os seus últimos anos pobre entre os pobres, passando horas e horas em oração diante do Santíssimo Sacramento, com o terço, recitando o breviário, lendo o Novo Testamento e a Imitação de Cristo. Não tendo sequer um pequeno quarto para se alojar, dormia habitualmente num canto das ruínas do Coliseu, como “vagabundo de Deus”, fazendo da sua existência uma oração incessante que subia até Ele.

9. No caminho para o Ano Santo, exorto todos a fazerem-se peregrinos da esperança, dando sinais concretos de um futuro melhor. Não nos esqueçamos de guardar «os pequenos detalhes do amor» (Exort. ap. Gaudete et Exsultate, 145): parar, aproximar-se, dar um pouco de atenção, um sorriso, uma carícia, uma palavra de conforto... Estes gestos não podem ser improvisados; antes, exigem uma fidelidade quotidiana, muitas vezes escondida e silenciosa, mas fortalecida pela oração. Neste momento, em que o canto da esperança parece dar lugar ao ruído das armas, ao grito de tantos inocentes feridos e ao silêncio das inúmeras vítimas das guerras, dirijamos a Deus a nossa invocação de paz. Somos pobres de paz e, para a acolher como um dom precioso, estendemos as mãos, ao mesmo tempo que nos esforçamos por costurá-la no dia-a-dia.

10. Em todas as circunstâncias, somos chamados a ser amigos dos pobres, seguindo os passos de Jesus, que foi o primeiro a solidarizar-se com os últimos. Que a Santa Mãe de Deus, Maria Santíssima, nos sustente neste caminho; ela que, aparecendo em Banneux, nos deixou uma mensagem a não esquecer: «Eu sou a Virgem dos pobres». A ela, a quem Deus olhou pela sua humilde pobreza e em quem realizou grandes coisas com a sua obediência, confiemos a nossa oração, convictos de que subirá até ao céu e será ouvida.

Roma – São João de Latrão, na Memória de Santo António,

Patrono dos pobres, 13 de junho de 2024.

FRANCISCO

DILEXIT NOS

CARTA ENCÍCLICA
DILEXIT NOS
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE O AMOR HUMANO E DIVINO DO CORAÇÃO DE JESUS

1. «Amou-nos», diz São Paulo referindo-se a Cristo (Rm 8, 37), para nos ajudar a descobrir que nada «será capaz de separar-nos» desse amor (Rm 8, 39). Paulo afirmava-o com firme certeza, porque o próprio Cristo tinha garantido aos seus discípulos: «Eu vos amei» (Jo 15, 9.12). Disse também: «Chamei-vos amigos» (Jo 15, 15). O seu coração aberto precede-nos e espera-nos incondicionalmente, sem exigir qualquer pré-requisito para nos amar e oferecer a sua amizade: Ele amou-nos primeiro (cf. 1 Jo 4, 10). Graças a Jesus, «conhecemos o amor que Deus nos tem, pois cremos nele» (1 Jo 4, 16).

CAPÍTULO I
A IMPORTÂNCIA DO CORAÇÃO

2. Para exprimir o amor de Jesus Cristo, recorre-se frequentemente ao símbolo do coração. Há quem se interrogue se isto atualmente tenha um significado válido. Porém, é necessário recuperar a importância do coração quando nos assalta a tentação da superficialidade, de viver apressadamente sem saber bem para quê, de nos tornarmos consumistas insaciáveis e escravos na engrenagem de um mercado que não se interessa pelo sentido da nossa existência [1].

O que entendemos quando dizemos “coração”?

3. No grego clássico profano, o termo kardía designa a parte mais íntima dos seres humanos, dos animais e das plantas. Em Homero, indica não só o centro corpóreo, mas também a alma e o centro espiritual do ser humano. Na Ilíada, o pensamento e o sentimento pertencem ao coração e estão muito próximos um do outro [2]. O coração aparece como o centro do desejo e o lugar onde são forjadas as decisões importantes duma pessoa [3]. Em Platão, o coração assume, de certa forma, uma função “sintetizante” do que é racional e das tendências de cada pessoa, uma vez que tanto o comando das faculdades superiores como as paixões se transmitem através das veias que convergem no coração [4]. Assim, desde a antiguidade advertimos a importância de considerar o ser humano não como uma soma de diferentes capacidades, mas como um complexo anímico-corpóreo com um centro unificador que dá a tudo o que a pessoa experimenta um substrato de sentido e orientação.

4. A Bíblia diz que «a Palavra de Deus é viva, eficaz [...] e discerne os sentimentos e as intenções do coração» (Heb 4, 12). Deste modo, fala-nos de um núcleo, o coração, que se esconde por detrás de todas as aparências, e até mesmo de pensamentos superficiais que nos confundem. Os discípulos de Emaús, na sua misteriosa caminhada com Cristo ressuscitado, viviam um momento de angústia, confusão, desespero, desilusão. Mas, para além disso e apesar de tudo, acontecia algo no seu íntimo: «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho?» (Lc 24, 32).

5. O coração é igualmente o lugar da sinceridade, onde não se pode enganar ou dissimular. Costuma indicar as verdadeiras intenções, o que se pensa, se acredita e se quer realmente, os “segredos” que não se contam a ninguém, em suma, a verdade nua e crua de cada um. O que não é aparência ou mentira, mas autêntico, real, inteiramente “pessoal”. É por isso que Sansão, que não havia revelado a Dalila o segredo da sua força, foi interpelado por ela deste modo: «Como podes dizer “Amo-te”, se o teu coração não está comigo?» (Jz 16, 15). Só quando lhe revelou o seu segredo tão escondido é que ela «viu que ele lhe abrira todo o coração» (Jz 16, 18).

6. Frequentemente, esta verdade íntima de cada pessoa está escondida debaixo de muita superficialidade, o que torna difícil o autoconhecimento e ainda mais difícil conhecer o outro: «Nada mais enganador que o coração, tantas vezes perverso: quem o pode conhecer?» (Jr 17, 9). Compreendemos assim porque é que o livro dos Provérbios nos exorta: «Vela com todo o cuidado sobre o teu coração, porque dele jorram as fontes da vida. Preserva-te da linguagem enganosa, afasta de ti a maledicência» (Pr 4, 23-24). A mera aparência, a dissimulação e o engano danificam e pervertem o coração. Para além das muitas tentativas de mostrar ou exprimir o que não somos, é no coração que se decide tudo: ali não conta o que mostramos exteriormente ou o que ocultamos, ali conta o que somos. E esta é a base de qualquer projeto sólido para a nossa vida, porque nada que valha a pena pode ser construído sem o coração. As aparências e as mentiras só trazem vazio.

7. Como metáfora, quero lembrar algo que já contei em outra ocasião: «Recordo que no carnaval, quando éramos crianças, a avó nos preparava doces, e a que ela fazia era uma massa muito fina. Depois colocava-a no azeite e aquela massa crescia e quando nós a comíamos, estava vazia. Aqueles doces em dialeto chamavam-se “mentirinhas”. E era precisamente a avó quem explicava a razão: aqueles doces “são como as mentiras, parecem grandes, mas dentro não têm nada, não há nada verdadeiro, não há substância alguma”» [5].

8. Em vez de procurar uma satisfação superficial e de representar um papel diante dos outros, é melhor deixar que surjam perguntas decisivas: quem realmente sou? O que procuro? Que sentido quero dar à vida, às minhas escolhas e ações? Por que razão e para que fim estou neste mundo? Como vou querer avaliar a minha existência quando ela terminar? Que sentido quero dar a tudo o que vivo? Quem quero ser perante os outros? Quem sou diante de Deus? Estas perguntas conduzem-me ao meu coração.

Regressar ao coração

9. Neste mundo líquido, é necessário voltar a falar do coração; indicar onde cada pessoa, de qualquer classe e condição, faz a própria síntese; onde os seres concretos encontram a fonte e a raiz de todas as suas outras potências, convicções, paixões e escolhas. Movemo-nos, porém, em sociedades de consumidores em série, preocupados só com o agora e dominados pelos ritmos e ruídos da tecnologia, sem muita paciência para os processos que a interioridade exige. Na sociedade atual, o ser humano «corre o perigo de se desorientar do centro de si mesmo» [6]. «O homem contemporâneo encontra-se com frequência transtornado, dividido, quase privado de um princípio interior que crie unidade e harmonia no seu ser e no seu agir. Modelos de comportamento infelizmente bastante difundidos, exaltam a sua dimensão racional-tecnológica ou, ao contrário, a instintiva» [7]. Falta o coração.

10. Ora, o problema da sociedade líquida é atual, mas a desvalorização do centro íntimo do homem – o coração – vem de mais longe: encontramo-la já no racionalismo grego e pré-cristão, no idealismo pós-cristão ou no materialismo nas suas diversas formas. O coração teve pouco espaço na antropologia e é uma noção estranha ao grande pensamento filosófico. Preferiram-se outros conceitos, como a razão, a vontade ou a liberdade. O seu significado permanece impreciso e não lhe foi atribuído um lugar específico na vida humana. Talvez porque não fosse fácil colocá-lo entre as ideias “claras e distintas” ou porque o conhecimento de si mesmo supõe dificuldade: parece que a realidade mais íntima é também a mais afastada do nosso conhecimento. Talvez porque o encontro com o outro não se consolida como caminho para nos encontrarmos a nós próprios, já que o pensamento conduz, uma vez mais, a um individualismo doentio. Muitos, para construir os seus sistemas de pensamento, sentiram-se seguros no âmbito mais controlável da inteligência e da vontade. E, ao não se encontrar um lugar para o coração, como algo distinto das faculdades e das paixões humanas consideradas separadamente, também não se desenvolveu suficientemente a ideia de um centro pessoal, em que a única realidade que pode unificar tudo é, em última análise, o amor.

11. Ao não se dar o devido valor ao coração, desvaloriza-se também o que significa falar a partir do coração, agir com o coração, amadurecer e curar o coração. Quando não se consideram as especificidades do coração, perdemos as respostas que a inteligência por si só não pode dar, perdemos o encontro com os outros, perdemos a poesia. E perdemos a história e as nossas histórias, porque a verdadeira aventura pessoal é aquela que se constrói a partir do coração. No fim da vida, só isto contará.

12. É preciso afirmar que temos um coração e que o nosso coração coexiste com outros corações que o ajudam a ser um “tu”. Como não podemos desenvolver longamente este tema, recorreremos ao personagem chamado Stavroguine, de um romance de Dostoievski [8]. Romano Guardini aponta-o como a própria encarnação do mal, porque a sua principal caraterística é não possuir coração: «Stavroguine, porém, não possui coração. O seu espírito é, portanto, frio e vazio e o seu corpo intoxica-se de indolência e sensualidade “animalesca”. Não pode ir até junto dos outros homens nem estes podem chegar na realidade até ele. Porque é o coração que origina a proximidade; é pelo coração que me encontro junto dos outros e os outros estão igualmente junto de mim. Só o coração pode acolher, dar refúgio. A interioridade é o ato e esfera do coração. Stavroguine, porém, encontra-se longe, […] muito afastado também de si mesmo. O homem está em intimidade com o seu íntimo no coração, não no espírito. Estar em intimidade com o íntimo, no espírito, não é do domínio humano. Mas quando o coração não vive, o homem encontra-se ao lado de si mesmo» [9].

13. É necessário que todas as ações sejam colocadas sob o “controle político” do coração, que a agressividade e os desejos obsessivos sejam acalmados no bem maior que o coração lhes oferece e na força que ele tem contra os males; que a inteligência e a vontade sejam também postas ao seu serviço, sentindo e saboreando as verdades em vez de as querer dominar, como algumas ciências tendem a fazer; que a vontade deseje o bem maior que o coração conhece, e que a imaginação e os sentimentos se deixem também moderar pelo bater do coração.

14. Em última análise, poder-se-ia dizer que eu sou o meu coração, porque é ele que me distingue, que me molda na minha identidade espiritual e que me põe em comunhão com as outras pessoas. O algoritmo que atua no mundo digital mostra que os nossos pensamentos e as decisões da nossa vontade são muito mais “standard” do que pensávamos. São facilmente previsíveis e manipuláveis. Não é o caso do coração.

15. Trata-se de uma palavra importante para a filosofia e a teologia, que procuram alcançar uma síntese integral. Na verdade, a palavra “coração” não pode ser explicada plenamente pela biologia, pela psicologia, pela antropologia ou por qualquer outra ciência. É uma daquelas palavras originais que «significam realidades que dizem respeito ao homem no seu conjunto enquanto pessoa corpóreo-espiritual» [10]. Assim, o biólogo não é mais realista quando fala do coração, porque vê apenas um aspecto dele e o todo não é menos real, pelo contrário, é-o ainda mais. Tampouco uma linguagem abstrata poderia ter o mesmo significado concreto e, simultaneamente, integrador. Se o “coração” leva ao mais íntimo da nossa pessoa, permite também que nos reconheçamos na nossa integralidade e não apenas num mero aspecto isolado.

16. Por outro lado, este poder único do coração ajuda-nos a compreender porque se diz que quando apreendemos uma realidade com o coração podemos conhecê-la melhor e mais plenamente. Isto conduz-nos inevitavelmente ao amor de que esse coração é capaz, porque «o mais íntimo da realidade é amor» [11]. Para Heidegger, segundo a interpretação de um pensador contemporâneo, a filosofia não começa com um conceito puro ou uma certeza, mas com uma comoção: «O pensamento deve ser comovido antes de trabalhar com conceitos, ou enquanto trabalha com eles. Sem a comoção, o pensamento não pode começar. A primeira imagem mental seria a pele arrepiada. É a comoção que primeiramente dá o que pensar e perguntar. A filosofia ocorre sempre numa tonalidade afetiva fundamental ( Stimmung[12]. E é aqui que surge o coração, que «guarda as tonalidades afetivas fundamentais, […] trabalha como “guardião da tonalidade afetiva fundamental”. O “coração” ouve não-metaforicamente a “voz silenciosa” do ser ao se deixar afinar e determinar por ela» [13].

O coração que une os fragmentos

17. Ao mesmo tempo, o coração torna possível qualquer vínculo autêntico, porque uma relação que não é construída com o coração não pode ultrapassar a fragmentação do individualismo. Restariam apenas duas mónadas que se justapõem, mas não se ligam verdadeiramente. Uma sociedade cada vez mais dominada pelo narcisismo e pela autorreferencialidade é uma sociedade “anti-coração”. E, por fim, chega-se à “perda do desejo”, porque o outro desaparece do horizonte e nos fechamos no nosso egoísmo, sem capacidade para relações saudáveis [14]. Como resultado, tornamo-nos incapazes de acolher a Deus. Como diria Heidegger, para receber o divino é preciso construir uma «casa de hóspedes» [15].

18. Vemos assim como no coração de cada pessoa se produz esta ligação paradoxal entre a valorização do próprio ser e a abertura aos outros, entre o encontro muito pessoal consigo mesmo e o dom de si aos outros. Só nos tornamos nós próprios quando adquirimos a capacidade de reconhecer o outro, e só encontra o outro quem é capaz de reconhecer e aceitar a própria identidade.

19. O coração é também capaz de unificar e harmonizar a própria história pessoal, que parece fragmentada em mil pedaços, mas na qual tudo pode adquirir sentido. É isso que o Evangelho exprime no olhar de Maria, que olhava com o coração. Ela foi capaz de dialogar com as experiências que conservava, meditando-as no seu coração, dando-lhes tempo: simbolizando-as e guardando-as no seu interior para as recordar. No Evangelho, a melhor expressão do que pensa o coração é oferecida por duas passagens de São Lucas que nos dizem que Maria “guardava (synetérei) todas estas coisas, ponderando-as (symbállousa) no seu coração” (cf. Lc 2, 19.51). O verbo symbállein (do qual provem a palavra “símbolo”) significa ponderar, unir duas coisas na mente, examinar-se, refletir, dialogar consigo mesmo. Em Lc 2, 51, dietérei é “conservava com cuidado”, e o que ela guardava não era apenas “a cena” que via, mas também o que ainda não compreendia, conservando-o presente e vivo, na esperança de unir tudo no seu coração.

20. Na era da inteligência artificial, não podemos esquecer que a poesia e o amor são necessários para salvar o humano. O que nenhum algoritmo conseguirá abarcar é, por exemplo, aquele momento de infância que se recorda com ternura e que continua a acontecer em todos os cantos do planeta, mesmo com o passar dos anos. Penso na utilização do garfo para selar as bordas daquelas empadas caseiras que preparávamos com as nossas mães ou avós. É aquele momento de aprendizagem culinária, a meio caminho entre a brincadeira e a idade adulta, em que assumimos a responsabilidade do trabalho para ajudar o outro.Tal como o exemplo do garfo, poderia citar milhares de pequenos pormenores que sustentam a biografia de cada um: sorrir com uma piada, fazer um desenho em contraluz numa janela, jogar o primeiro jogo de futebol com uma “bola de trapos”, cuidar de lagartas numa caixa de sapatos, secar uma flor entre as páginas de um livro, cuidar de um pássaro que caiu do ninho, formular um desejo ao despetalar uma margarida. Todos estes pequenos pormenores, o ordinário-extraordinário, nunca poderão estar entre os algoritmos. Porque o garfo, as piadas, a janela, a bola, a caixa de sapatos, o livro, o pássaro, a flor… são sustentados pela ternura preservada nas memórias do coração.

21. Este núcleo de cada ser humano, o seu centro mais íntimo, não é o núcleo da alma, mas da pessoa inteira na sua identidade única, que é alma e corpo. Tudo está unificado no coração, que pode ser a sede do amor com todas as suas componentes espirituais, psíquicas e também físicas. Em última análise, se aí reina o amor, a pessoa realiza a sua identidade de forma plena e luminosa, porque cada ser humano é criado sobretudo para o amor; é feito nas suas fibras mais profundas para amar e ser amado.

22. É por esta razão que, assistindo a sucessivas novas guerras, com a cumplicidade, a tolerância ou a indiferença de outros países, ou com simples lutas de poder em torno de interesses de parte, podemos pensar que a sociedade mundial está a perder o seu coração. Basta olhar e ouvir – nos diferentes lados do confronto – as idosas que são prisioneiras destes conflitos devastadores. É desolador vê-las chorar os netos assassinados, ou escutá-las desejar a própria morte por terem perdido a casa onde sempre viveram. Elas, que muitas vezes foram modelos de força e resiliência ao longo de vidas difíceis e sacrificadas, chegam à última fase da sua existência e não recebem uma merecida paz, mas sim angústia, medo e indignação. Descarregar a culpa nos outros não resolve este drama vergonhoso. Ver as avós a chorar sem que isso se torne intolerável é sinal de um mundo sem coração.

23. Quando alguém reflete, procura ou medita sobre o próprio ser e a sua identidade, ou analisa questões mais elevadas; quando pensa no sentido da própria vida e até mesmo procura a Deus, e ainda quando sente o gosto de ter vislumbrado algo da verdade; todas estas reflexões exigem que se encontre o seu ponto culminante no amor. Amando, a pessoa sente que sabe porquê e para que vive. Assim, tudo converge para um estado de conexão e de harmonia. Por isso, diante do próprio mistério pessoal, talvez a pergunta mais decisiva que se possa fazer seja esta: tenho coração?

O fogo

24. Isto comporta consequências para a espiritualidade. Por exemplo, a teologia dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio de Loyola tem como princípio o affectus. O discurso é construído sobre uma vontade fundamental – com toda a força do coração – que dá energia e recursos à tarefa de reorganizar a vida. As regras e as composições de lugar que Inácio põe em prática funcionam sobre um “fundamento” que é diferente delas: o desconhecido do coração. Michel de Certeau mostra como as ‘moções’ de que fala Santo Inácio são as irrupções de uma vontade de Deus e de uma vontade do próprio coração que permanece diversa em relação à ordem manifesta. Algo de inesperado começa a falar no coração da pessoa, algo que surge do incognoscível, que abala a superfície do conhecido e se lhe opõe. É a origem de um novo “ordenamento da vida” a partir do coração. Não se trata de discursos racionais que devem ser postos em prática, passando-os para a vida, de modo a que a afetividade e a prática fossem simplesmente as consequências – dependentes – de um conhecimento adquirido [16].

25. Onde o filósofo detém o seu pensamento, o coração fiel ama, adora, pede perdão e oferece-se para servir no lugar que o Senhor, à escolha, lhe dá para O seguir. Então percebe que é o “tu” de Deus e que pode ser um “eu” porque Deus é um “tu” para ele. Na realidade, somente o Senhor se dispõe a tratar-nos sempre – e para sempre – como um “tu”. Aceitar a sua amizade é uma questão de coração e constitui-nos como pessoas no sentido pleno da palavra.

26. São Boaventura dizia que, no final, se deve perguntar «não à luz, mas ao fogo» [17]. E ensinava que «a fé está no intelecto, de tal modo que provoca o afeto. Por exemplo: saber que Cristo morreu por nós não permanece (somente) conhecimento, mas torna-se necessariamente afeto, amor» [18]. Nessa linha, São John Henry Newman tomou como lema a frase “ Cor ad cor loquitur”, porque, além de toda dialética, o Senhor salva-nos falando ao nosso coração a partir de seu Sagrado Coração. Seguindo ele, grande pensador, esta mesma lógica fazia com que o lugar do encontro mais profundo consigo mesmo e com o Senhor não fosse a leitura ou a reflexão, mas o diálogo orante, de coração a coração, com Cristo vivo e presente. É por isso que Newman encontrava na Eucaristia o Coração de Jesus Cristo vivo, capaz de libertar, de dar sentido a cada momento e de derramar a verdadeira paz sobre o ser humano: «Ó Coração Sacratíssimo e Amorosíssimo de Jesus, estás escondido na Sagrada Eucaristia, e continuas a bater por nós […]. Eu te adoro, então, com todo o meu melhor amor e temor, com meu carinho fervoroso, com a minha vontade mais conquistada e resolvida. Ó meu Deus, quando tu te rebaixas a sofrer para (que eu possa) receber-te, para comer e beber a Ti, e Tu por um tempo fazes a tua morada dentro de mim, ó faça meu coração bater com o teu Coração. Purifica-o de tudo o que é terreno, de tudo o que é orgulhoso e sensual, tudo o que é duro e cruel, de toda a perversidade, de toda a desordem, de todo amortecimento. Então, encha-o de Ti, que nem os acontecimentos do dia, nem as circunstâncias do tempo possam ter o poder de perturbá-lo, mas que em teu amor e temor possa ter paz» [19] .

27. Perante o Coração de Jesus vivo e atual, o nosso intelecto, iluminado pelo Espírito, compreende as palavras de Jesus. Assim, a nossa vontade põe-se em ação para as praticar. Mas isso poderia permanecer como uma forma de moralismo autossuficiente. Ouvir, saborear e honrar o Senhor pertence ao coração. Só o coração é capaz de colocar as outras faculdades e paixões e toda a nossa pessoa numa atitude de reverência e obediência amorosa ao Senhor.

O mundo pode mudar a partir do coração

28. Só a partir do coração é que as nossas comunidades serão capazes de unir e pacificar os diferentes intelectos e vontades, para que o Espírito nos possa guiar como uma rede de irmãos, porque a pacificação é também uma tarefa do coração. O Coração de Cristo é êxtase, é saída, é dom, é encontro. N’Ele tornamo-nos capazes de nos relacionarmos uns com os outros de forma saudável e feliz, e de construir neste mundo o Reino de amor e de justiça. O nosso coração unido ao de Cristo é capaz deste milagre social.

29. Levar o coração a sério tem consequências sociais. Como ensina o Concílio Vaticano II, «temos, com efeito, de reformar o nosso coração, com os olhos postos no mundo inteiro e naquelas tarefas que podemos realizar juntos para o progresso da humanidade» [20]. Porque «os desequilíbrios de que sofre o mundo atual estão ligados com aquele desequilíbrio fundamental que se radica no coração do homem» [21]. Perante os dramas do mundo, o Concílio convida-nos a regressar ao coração, explicando que o ser humano «pela sua interioridade, transcende o universo das coisas: tal é o conhecimento profundo que ele alcança quando reentra no seu interior, onde Deus, que perscruta os corações (cf. 1 Sm 16, 7; Jr 17, 10), o espera, e onde ele, sob o olhar do Senhor, decide da própria sorte» [22].

30. Isto não significa confiar demasiado em nós próprios. Sejamos cautelosos: tenhamos consciência de que o nosso coração não é autossuficiente; é frágil e ferido. Tem dignidade ontológica, mas ao mesmo tempo deve procurar uma vida mais digna [23]. O Concílio Vaticano II também diz que «o fermento evangélico despertou e desperta no coração humano uma irreprimível exigência de dignidade» [24], ainda que não baste apenas conhecer o Evangelho, ou fazer mecanicamente o que ele nos manda, para viver de acordo com esta dignidade. Precisamos da ajuda do amor divino. Recorramos, pois, ao Coração de Cristo, o centro do seu ser, que é uma fornalha ardente de amor divino e humano, a mais alta plenitude que a humanidade pode atingir. É aí, nesse Coração, que finalmente nos reconhecemos e aprendemos a amar.

31. Por último, esse Coração Sagrado é o princípio unificador da realidade, porque «Cristo é o coração do mundo; a sua Páscoa de morte e ressurreição é o cerne da história que, graças a Ele, é história de salvação» [25]. Todas as criaturas avançam «juntamente conosco e através de nós, para a meta comum, que é Deus, numa plenitude transcendente onde Cristo ressuscitado tudo abraça e ilumina» [26]. Diante do Coração de Cristo, peço mais uma vez ao Senhor que tenha compaixão desta terra ferida, que Ele quis habitar como um de nós. Que derrame os tesouros da sua luz e do seu amor, para que o nosso mundo, que sobrevive entre guerras, desequilíbrios socioeconómicos, consumismo e o uso anti-humano da tecnologia, recupere o que é mais importante e necessário: o coração.

CAPÍTULO II
GESTOS E PALAVRAS DE AMOR

32. O Coração de Cristo, que simboliza o centro pessoal de onde brota o seu amor por nós, é o núcleo vivo do primeiro anúncio. Ali se encontra a origem da nossa fé, a fonte que mantém vivas as convicções cristãs.

Gestos que refletem o coração

33. O modo como nos ama é algo que Cristo não quis explicar-nos exaustivamente. Mostra-o nos seus gestos. Observando-O, podemos descobrir como trata cada um de nós, mesmo que nos custe perceber isso. Procuremos, pois, onde a nossa fé pode reconhecê-Lo: no Evangelho.

34. O Evangelho diz que Jesus «veio para os seus» (Jo 1, 11). Os “seus” somos nós, pois não nos trata como algo estranho. Considera-nos como propriedade sua, que guarda com cuidado, com afeto. Trata-nos como seus. Isto não significa que sejamos seus escravos; Ele próprio o nega: «Não vos chamo servos» (Jo 15, 15). O que Ele propõe é a pertença mútua dos amigos. Veio, superou todas as distâncias, tornou-se próximo de nós, como as coisas mais simples e quotidianas da existência. Efetivamente, Ele tem outro nome, que é “Emanuel” e significa “Deus conosco”, Deus próximo à nossa vida, vivendo entre nós. O Filho de Deus encarnou e «esvaziou-se a si mesmo, tomando a condição de servo» (Fl 2, 7).

35. Isto se torna evidente quando vemos o modo como age. Está sempre à procura, sempre próximo, sempre aberto ao encontro. Contemplamos isto quando se detém a conversar com a Samaritana, junto do poço onde ela ia buscar água (cf. Jo 4, 5-7). Vemo-lo quando, no meio da noite escura, encontra Nicodemos, que tinha medo de ser visto perto d’Ele (cf. Jo 3, 1-2). Admiramo-lo quando, sem se envergonhar, deixa que uma prostituta lhe lave os pés (cf. Lc 7, 36-50); quando diz, olhos nos olhos, à mulher adúltera: “Não te condeno” (Jo 8, 11); ou quando, perante a indiferença dos discípulos, diz afetuosamente ao cego do caminho: “Que queres que te faça?” (Mc 10, 51). Cristo mostra que Deus é proximidade, compaixão e ternura.

36. Se curava alguém, preferia aproximar-se: «Jesus estendeu a mão e tocou-o» ( Mt 8, 3); «tocou-lhe na mão» ( Mt 8, 15); «tocou-lhes nos olhos» ( Mt 9, 29). E, como faz uma mãe, curou os doentes até com a própria saliva (cf. Mc 7, 33) para que não O sentissem alheio às suas vidas. Porque «o Senhor conhece a bela ciência das carícias. A ternura de Deus não nos ama com palavras; aproxima-se de nós e, estando perto, dá-nos o seu amor com toda a ternura possível» [27].

37. Visto que nos custa confiar, porque fomos feridos por tantas falsidades, agressões e desilusões, ele sussurra-nos ao ouvido: «Filho, tem confiança» (Mt 9, 2); «Filha, tem confiança» (Mt 9, 22). Trata-se de vencer o medo e de tomar consciência de que, com Ele, não temos nada a perder. A Pedro, que estava desconfiado, «Jesus estendeu-lhe a mão, segurou-o e disse-lhe: […] “Porque duvidaste?”» (Mt 14, 31). Não tenhas medo. Deixa-O aproximar-se e sentar-se ao teu lado. Podemos duvidar de muitas pessoas, mas não d’Ele. E não te paralises por causa dos teus pecados.Recorda-te que muitos pecadores «sentaram-se com Ele» (Mt 9, 10) e Jesus não se escandalizou com nenhum deles. Os elitistas da religião queixavam-se e chamavam-Lhe «glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores» (Mt 11, 19). Quando os fariseus criticavam esta sua proximidade com as pessoas consideradas humildes ou pecadoras, Jesus dizia-lhes: «Prefiro a misericórdia ao sacrifício» (Mt 9, 13).

38. Esse mesmo Jesus espera hoje que lhe dês a possibilidade de iluminar a tua existência, de erguer-te, de encher-te com a sua força. Porque, antes de morrer, disse aos seus discípulos: «Não vos deixarei órfãos; Eu voltarei a vós! Ainda um pouco e o mundo já não me verá; vós é que me vereis» (Jo 14, 18-19). Ele consegue sempre uma maneira para se manifestar na tua vida, para que tu O possas encontrar.

O olhar

39. O Evangelho conta-nos que se aproximou dele um homem rico, cheio de ideais, mas sem forças para mudar de vida. Então «Jesus, fitando nele o olhar, sentiu afeição por ele» (Mc 10, 21). Consegues imaginar esse instante, o encontro entre os olhos deste homem e o olhar de Jesus? Se te chama, se te convoca para uma missão, primeiro Ele olha para ti, penetra no teu íntimo, percebe e conhece tudo o que há em ti, pousa sobre ti o seu olhar: «Caminhando ao longo do mar da Galileia, Jesus viu dois irmãos [...]. Um pouco mais adiante, viu outros dois irmãos» (Mt 4, 18.21).

40. Muitos textos do Evangelho mostram-nos que Jesus está atento às pessoas, às suas preocupações, ao seu sofrimento. Por exemplo: «Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida» (Mt 9, 36). Quando nos parece que somos ignorados por todos, que não há quem se interesse pelo que nos acontece, que não temos importância para ninguém, Ele permanece atento a cada um de nós. Foi o que fez notar a Natanael, que se encontrava só e ensimesmado: «Antes de Filipe te chamar, Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira!» (Jo 1, 48).

41. Precisamente porque está atento, é capaz de reconhecer cada boa intenção que temos, cada pequena boa ação que praticamos. O Evangelho diz que «Viu também uma viúva pobre depositar [no cofre do tesouro do templo] duas moedinhas» (Lc 21, 2) e imediatamente o fez notar aos seus apóstolos. Jesus presta atenção de tal modo que admira as coisas boas que encontra em nós. Quando o centurião Lhe suplicou com toda a confiança, «Jesus, ao ouvi-lo, admirou-se» (Mt 8, 10). Como é belo saber que, se outros ignoram as nossas boas intenções ou as coisas positivas que fazemos, Jesus não só não as ignora como até as admira.

42. Enquanto ser humano, tinha aprendido isto de Maria, sua mãe. Ela, que tudo contemplava com cuidado e «guardava tudo no seu coração» (Lc 2, 19.51), ensinou-O desde muito cedo, na companhia de São José, a prestar atenção.

As palavras

43. Embora nas Escrituras tenhamos a sua Palavra sempre viva e atual, por vezes Jesus fala interiormente e convoca-nos para nos conduzir ao melhor lugar. Esse lugar melhor é o seu próprio Coração. Ele chama-nos para nos introduzir no lugar onde podemos recuperar a força e a paz: «Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei de aliviar-vos» (Mt 11, 28). Por isso, pede aos seus discípulos: «Permanecei em mim» (Jo 15, 4).

44. As palavras que Jesus pronunciou indicavam que a sua santidade não elimina os sentimentos. Por vezes, mostravam um amor apaixonado, que sofre por nós, se comove, se lamenta e chega, até mesmo, às lágrimas. É evidente que Ele não era indiferente às preocupações e angústias comuns das pessoas, como o cansaço ou a fome: «Tenho compaixão desta multidão [...] Não têm nada para comer [...] desfalecerão no caminho, e alguns vieram de longe» (Mc 8, 2-3).

45. O Evangelho não esconde os sentimentos de Jesus em relação a Jerusalém, a cidade amada: «Quando se aproximou, ao ver a cidade, Jesus chorou sobre ela» (Lc 19, 41) e exprimiu o seu maior desejo: «Se neste dia também tu tivesses conhecido o que te pode trazer a paz!» (Lc 19, 42). Os evangelistas, embora por vezes O mostrem poderoso ou glorioso, não deixam de exprimir os seus sentimentos diante da morte e da dor dos amigos. Antes de contar que, junto do túmulo de Lázaro, «Jesus começou a chorar» (Jo 11, 35), o Evangelho detém-se a dizer que «Jesus era muito amigo de Marta, da sua irmã e de Lázaro» (Jo 11, 5) e que, ao ver Maria e os seus companheiros a chorar, «suspirou profundamente e comoveu-se» (Jo 11, 33).A narração não deixa dúvidas de que se trata de um pranto sincero, que nasce de uma perturbação interior. Por fim, a angústia de Jesus perante a sua própria morte violenta, às mãos daqueles que tanto amava, também não ficou escondida: «começou a sentir pavor e a angustiar-se» (Mc 14, 33), a ponto de dizer: «a minha alma está numa tristeza mortal» (Mc 14, 34). Esta perturbação interior exprime-se com toda a sua força no grito do Crucificado: «Meu Deus, meu Deus, porque Me abandonaste?» (Mc 15, 34).

46. Tudo isto, à primeira vista, pode parecer um mero romanticismo religioso. No entanto, é o que há de mais sério e mais decisivo. Encontra a sua expressão máxima em Cristo pregado numa cruz. Essa é a palavra de amor mais eloquente. Não se trata de algo superficial, não é puro sentimento, não é uma alienação espiritual. É amor. Por isso, quando São Paulo procurava as palavras certas para explicar a sua relação com Cristo, disse:«amou-me e a Si mesmo se entregou por mim» (Gl 2, 20). Esta era a sua maior convicção: saber-se amado. A entrega de Cristo na cruz subjugava-o, mas só fazia sentido porque havia algo ainda maior do que essa entrega: “Amou-me”. Quando muitas pessoas procuravam em várias propostas religiosas salvação, bem-estar ou segurança, Paulo, tocado pelo Espírito, soube olhar além e maravilhar-se com o que há de maior e mais fundamental: “Amou-me”.

47. Depois de contemplar Cristo, vendo o que os seus gestos e palavras nos revelam do seu Coração, recordemos agora como a Igreja reflete sobre o santo mistério do Coração do Senhor.

CAPÍTULO III
ESTE É O CORAÇÃO QUE TANTO AMOU

48. A devoção ao Coração de Cristo não é o culto a um órgão separado da Pessoa de Jesus. O que contemplamos e adoramos é a Jesus Cristo por inteiro, o Filho de Deus feito homem, representado numa imagem sua em que se destaca o seu coração. Neste caso, o coração de carne é entendido como imagem ou sinal privilegiado do centro mais íntimo do Filho incarnado e do seu amor ao mesmo tempo divino e humano, porque, mais do que qualquer outro membro do seu corpo, é «o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade» [28].

Adoração a Cristo

49. É indispensável sublinhar que nos relacionamos com a Pessoa de Cristo, através da amizade e da adoração, atraídos pelo amor representado na imagem do seu Coração. Veneramos essa imagem que O representa, mas a adoração dirige-se apenas a Cristo vivo, na sua divindade e em toda a sua humanidade, para nos deixarmos abraçar pelo seu amor humano e divino.

50. Seja qual for a imagem utilizada, é certo que o objeto de adoração é o Coração vivo de Cristo – e nunca uma imagem –, porque faz parte do seu Corpo santíssimo e ressuscitado, inseparável do Filho de Deus que o assumiu para sempre. Ele é adorado enquanto «o coração da pessoa do Verbo a quem está unido de modo inseparável» [29]. Não o adoramos isoladamente, mas na medida em que com esse Coração é o próprio Filho incarnado que vive, ama e recebe o nosso amor. Por isso, qualquer ato de amor ou de adoração ao seu Coração é «na realidade e propriamente tributado ao Cristo mesmo» [30], porque se refere espontaneamente a Ele e é «o símbolo e a imagem sensível da caridade infinita de Jesus Cristo» [31].

51. Por isso, ninguém deve pensar que esta devoção nos possa separar ou distanciar de Jesus Cristo e do seu amor. De modo espontâneo e direto, ela dirige-nos a Ele e só a Ele, que nos chama a uma amizade valiosa, feita de diálogo, afeto, confiança e adoração. Este Cristo com o seu coração trespassado e ardente é o mesmo Cristo que por amor nasceu em Belém, percorreu a Galileia curando, acariciando, derramando misericórdia, e amou-nos até ao fim, estendendo os braços na cruz. Por fim, é o mesmo que ressuscitou e vive gloriosamente no meio de nós.

A veneração da sua imagem

52. Convém notar que a imagem de Cristo com o seu coração, ainda que de maneira nenhuma possa ser objeto de adoração, não é uma imagem qualquer, entre muitas outras que poderíamos escolher. Não é algo inventado de modo abstrato ou desenhado por um artista, «não é um símbolo imaginário, é um símbolo real, que representa o centro, a fonte da qual brotou a salvação para a humanidade inteira» [32].

53. Há uma experiência humana universal que torna esta imagem única. Pois não há dúvida que, ao longo da história e em várias partes do mundo, o coração se tenha tornado um símbolo da intimidade mais pessoal e também do afeto, emoções e capacidade de amar. Para além de qualquer explicação científica, uma mão colocada sobre o coração de um amigo exprime um afeto especial; quando uma pessoa se apaixona e está perto da pessoa amada, o batimento cardíaco acelera; quando alguém sofre um abandono ou uma desilusão por parte da pessoa amada, sente uma espécie de forte opressão no coração.Por outro lado, para exprimir que algo é sincero, que vem realmente do centro da pessoa, afirma-se: “Digo-o do fundo do coração”. A linguagem poética não pode ignorar a força destas experiências. Por isso, é inevitável que, ao longo da história, o coração tenha alcançado uma força simbólica única, que não é meramente convencional.

54. É, pois, compreensível que a Igreja tenha escolhido a imagem do coração para representar o amor humano e divino de Jesus Cristo e o núcleo mais íntimo da sua Pessoa. Mas, se a imagem de um coração com chamas de fogo pode ser um símbolo eloquente que nos recorda o amor de Jesus Cristo, é conveniente que esse coração faça parte de uma imagem de Jesus Cristo.Isto torna ainda mais significativo o seu apelo a uma relação pessoal de encontro e de diálogo [33]. Essa imagem venerada de Cristo, onde se destaca o seu coração amoroso, tem ao mesmo tempo um olhar que apela ao encontro, ao diálogo e à confiança; tem mãos fortes capazes de nos sustentar; tem uma boca que nos fala de uma forma única e personalíssima.

55. O coração tem o valor de ser percebido não como um órgão separado, mas como um centro íntimo que gera unidade e, ao mesmo tempo, como expressão da totalidade da pessoa, o que não acontece com outros órgãos do corpo humano. Se é o centro íntimo da totalidade da pessoa e, portanto, uma parte que representa o todo, poderíamos facilmente desnaturalizá-lo caso o contemplássemos separado da figura do Senhor. A imagem do coração deve remeter-nos para a totalidade de Jesus Cristo no seu centro unificador e, a partir desse, simultaneamente deve levar-nos a contemplar Cristo em toda a beleza e riqueza da sua humanidade e da sua divindade.

56. Isto vai além da atração que podem gerar as várias imagens do Coração de Cristo, pois não é que, diante das imagens de Cristo, «se deva pedir alguma coisa a essas imagens ou depositar confiança nelas como antigamente faziam os pagãos», mas que «por meio das imagens que beijamos e diante das quais nos descobrimos e prostramos, adoramos a Cristo» [34].

57. Além disso, algumas destas imagens podem parecer-nos pouco atrativas e não nos mover muito ao amor e à oração. Isso é secundário, pois a imagem não é mais do que uma figura motivadora, e, como diriam os orientais, não devemos fixar-nos no dedo que aponta para a lua. Enquanto a Eucaristia é presença real a ser adorada, neste caso trata-se apenas de uma imagem que, embora tenha sido abençoada, nos convida a ir além dela, nos orienta a elevar e unir o nosso próprio coração ao de Cristo vivo. A imagem venerada convoca, aponta, conduz, a fim de dedicarmos tempo ao encontro com Cristo e à sua adoração, conforme nos pareça melhor imaginá-Lo. Assim, olhando a imagem, estamos diante de Cristo, e diante d’Ele «o amor se detém, contempla o mistério, desfruta dele em silêncio» [35].

58. Dito tudo isto, não devemos esquecer que esta imagem do coração nos fala de carne humana, da terra, e por isso nos fala também de Deus que quis entrar na nossa condição histórica, fazer-se história e partilhar o nosso caminho terreno. Uma forma de devoção mais abstrata ou estilizada não será necessariamente mais fiel ao Evangelho, porque neste sinal sensível e acessível se manifesta o modo como Deus quis revelar-se e tornar-se próximo de nós.

Amor sensível

59. Amor e coração não estão necessariamente unidos, pois num coração humano podem reinar o ódio, a indiferença e o egoísmo. Porém, não atingimos a nossa plena humanidade se não saímos de nós mesmos, tal como não nos tornamos inteiramente nós mesmos se não amamos. Portanto, o centro mais íntimo da nossa pessoa, criado para o amor, só realizará o projeto de Deus enquanto amar. Assim, o símbolo do coração simboliza ao mesmo tempo o amor.

60. O Filho eterno de Deus, que infinitamente me transcende, quis amar-me também com um coração humano. Os seus sentimentos humanos tornam-se o sacramento de um amor infinito e definitivo. O seu coração não é, portanto, um símbolo físico que só exprime uma realidade meramente espiritual ou separada da matéria. O olhar dirigido ao Coração do Senhor contempla uma realidade física: a sua carne humana, que torna possível que Cristo tenha emoções e sentimentos muito humanos – como nós –, embora plenamente transformados pelo seu amor divino. A devoção deve alcançar o amor infinito da pessoa do Filho de Deus, mas é preciso afirmar que este é inseparável do seu amor humano e, para isso, ajuda-nos a imagem do seu coração de carne.

61. Se ainda hoje no sentimento popular o coração é percebido como o centro afetivo de todo o ser humano, é ele que melhor pode significar o amor divino de Cristo que está unido para sempre e de modo inseparável ao seu amor integralmente humano. Já Pio XII recordava que a Palavra de Deus, quando «descreve o amor do coração de Jesus, não compreende somente a caridade divina, mas se estende também aos sentimentos do afeto humano. [...] Por conseguinte, o coração de Cristo, unido hipostaticamente à pessoa divina do Verbo, sem dúvida deve ter palpitado de amor e de qualquer outro afeto sensível» [36].

62. Contrariamente a alguns que negavam ou relativizavam a verdadeira humanidade de Cristo, nos Padres da Igreja encontramos uma forte afirmação da realidade concreta e tangível do afeto humano do Senhor. Assim, São Basílio sublinhava que a incarnação do Senhor não era algo de fantasioso, mas que «o Senhor possuía os afetos naturais» [37]. São João Crisóstomo propunha um exemplo: «Se não tivesse possuído a nossa natureza, não teria experimentado a tristeza uma e outra vez» [38]. Santo Ambrósio afirmava: «Como tomou a alma, tomou também as paixões da alma» [39]. E Santo Agostinho apresentava os afetos humanos como uma realidade que, uma vez assumida por Cristo, já não é alheia à vida da graça: «O Senhor Jesus, não obrigado por necessidade, mas por voluntária compaixão assumiu este sentimento de fraqueza humana, como aceitara a própria carne na condição da humana fraqueza, para que [...] se a algum deles [os membros da Igreja] acontecer contristar-se e condoer-se no meio das tentações humanas, não julgue-se por isso alheio à graça de Deus» [40]. Finalmente, São João Damasceno considera esta real experiência afetiva de Cristo na sua humanidade como um sinal de que Ele assumiu integralmente a nossa natureza – e não parcialmente – para a redimir e transformar por inteiro. Assim, Cristo assumiu todos os elementos que compõem a natureza humana, a fim de que todos eles fossem santificados [41].

63. Vale a pena retomar aqui a reflexão de um teólogo que reconhece que, sob a influência do pensamento grego, a teologia relegou durante muito tempo o corpo e os sentimentos ao universo do «pré-humano, sub-humano ou tentador do verdadeiramente humano», mas «o que a teologia não resolveu na teoria, foi resolvido pela espiritualidade na prática. A espiritualidade e a religiosidade popular mantiveram viva a relação com os aspectos somáticos, psicológicos e históricos de Jesus. A Via-Sacra, a devoção às suas chagas, a espiritualidade do Preciosíssimo Sangue, a devoção ao Coração de Jesus, as práticas eucarísticas [...]: tudo isso preencheu as lacunas da teologia, alimentando a imaginação e o coração, o amor e a ternura por Cristo, a esperança e a memória, o desejo e a nostalgia. A razão e a lógica tomaram outros caminhos» [42].

Tríplice amor

64. Entretanto, não nos detemos só nos seus sentimentos humanos, por mais belos e comoventes que sejam, pois, contemplando o Coração de Cristo reconhecemos como nos seus sentimentos nobres e sadios, na sua ternura, no vibrar do seu afeto humano, se manifesta toda a verdade do seu amor divino e infinito. Assim o exprimiu Bento XVI: «Do horizonte infinito do seu amor, Deus quis entrar nos limites da história e da condição humana, assumiu um corpo e um coração; de modo que nós possamos contemplar e encontrar o infinito no finito, o Mistério invisível e inefável no Coração humano de Jesus, o Nazareno» [43].

65. Na realidade, há um tríplice amor que está contido e nos deslumbra na imagem do Coração do Senhor. Primeiramente, o amor divino infinito que encontramos em Cristo. Mas, pensamos também na dimensão espiritual da humanidade do Senhor. Desde esse ponto de vista, «o coração de Cristo é símbolo de enérgica caridade, que, infundida em sua alma, constitui o precioso dote da sua vontade humana […]. Finalmente […] é símbolo do seu amor sensível» [44].

66. Estes três amores não são capacidades separadas, funcionando de forma paralela ou desconexa, mas atuam e exprimem-se em conjunto e num fluxo constante de vida: «À luz da fé, pela qual cremos que na pessoa de Cristo estão unidas a natureza humana e a natureza divina, podemos conceber os estreitíssimos vínculos que existem entre o amor sensível do coração físico de Jesus e o seu duplo amor espiritual, o humano e o divino» [45].

67. Por isso, entrando no Coração de Cristo, sentimo-nos amados por um coração humano, cheio de afetos e sentimentos como os nossos. A sua vontade humana quer amar-nos livremente, e esse querer espiritual está plenamente iluminado pela graça e pela caridade. Quando chegamos ao mais íntimo desse Coração, somos inundados pela glória incomensurável do seu amor infinito de Filho eterno, que já não podemos separar do seu amor humano. É precisamente no seu amor humano, e não afastando-nos dele, que encontramos o seu amor divino; encontramos «o infinito no finito» [46].

68. É ensinamento constante e definitivo da Igreja que a nossa adoração da sua Pessoa é única, e abrange inseparavelmente tanto a sua natureza divina como a sua natureza humana. Desde os tempos antigos, a Igreja ensinou que devemos «adorar um único e mesmo Cristo, Filho de Deus e do homem, de duas e em duas naturezas inseparáveis e indivisas» [47]. E isto «com uma única adoração [...], visto que o Verbo veio a ser carne» [48]. De modo algum Cristo é «adorado em duas naturezas, introduzindo com isto duas adorações», mas deve-se «venerar com única adoração o Deus Verbo encarnado junto com a sua carne» [49].

69. São João da Cruz quis exprimir que, na experiência mística, o amor incomensurável de Cristo ressuscitado não é sentido como estranho à nossa vida. O Infinito de algum modo desce para que, através do Coração aberto de Cristo, possamos experimentar um encontro de amor verdadeiramente recíproco: «É bem possível que a ave de voo baixo possa prender a Águia-real das alturas, quando Ela Se abaixa querendo ser presa» [50]. E explica que «vendo a esposa ferida pelo seu amor, acorre ao seu gemido, ferido também Ele pelo amor dela; é que, nos apaixonados, a ferida de um é de ambos, e os dois sentem o mesmo» [51]. Este místico entende a figura do lado ferido de Cristo como um apelo à plena união com o Senhor. Ele é o cervo vulnerado, ferido quando ainda não nos tínhamos deixado tocar pelo seu amor, que desce às correntes de água para saciar a sua própria sede e que encontra conforto sempre que nos dirigimos a Ele:

«Volta, minha pomba,
Que, ferido, o veado
Lá no outeiro assoma
Ao sopro do teu voo e o fresco toma» [52].

Perspectivas trinitárias

70. A devoção ao Coração de Jesus é marcadamente cristológica; é uma contemplação direta de Cristo que convida à união com Ele. Isto é legítimo, se tivermos em conta o que pede a Carta aos Hebreus: correr a nossa prova «tendo os olhos postos em Jesus» ( Heb 12, 2). Entretanto, não podemos ignorar que, ao mesmo tempo, Jesus se apresenta como o caminho para ir ao Pai: «Eu sou o caminho [...]. Ninguém pode ir ao Pai senão por mim» ( Jo 14, 6). Ele quer conduzir-nos ao Pai. É por isso que a pregação da Igreja, desde o início, não nos detém em Jesus Cristo, mas nos conduz ao Pai. Ele é quem por fim, enquanto plenitude originária, deve ser glorificado [53].

71. Detenhamo-nos, por exemplo, na carta aos Efésios, onde podemos ver com força e clareza como a nossa adoração se dirige ao Pai: «Eu dobro os joelhos diante do Pai» ( Ef 3, 14). «Um só Deus e Pai de todos, que reina sobre todos, age por todos e permanece em todos» ( Ef 4, 6). «Sem cessar, dai graças por tudo a Deus Pai» ( Ef 5, 20). O Pai é Aquele a quem estamos destinados (cf. 1 Cor 8, 6). Por isso, São João Paulo II dizia que «toda a vida cristã é como uma grande peregrinação para a casa do Pai» [54]. É o que experimentou Santo Inácio de Antioquia no seu caminho para o martírio: «Dentro de mim, há uma água viva, que murmura e diz: “Vem para o Pai”» [55].

72. Ele é, acima de tudo, o Pai de Jesus Cristo: «Bendito seja o Deus, Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo» ( Ef 1, 3). É «o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai a quem pertence a glória» ( Ef 1, 17). Quando o Filho se fez homem, todos os desejos e aspirações do seu coração humano se dirigiam ao Pai. Se vemos como Cristo se referia ao Pai, podemos constatar este fascínio do seu coração humano, esta orientação perfeita e constante para o Pai [56]. A sua história nesta nossa terra foi um caminhar sentindo no seu coração humano um apelo incessante para ir ao Pai [57].

73. Sabemos que a palavra aramaica que Ele usou para se dirigir ao Pai foi “Abbá”, que significa “paizinho”. No seu tempo, esta familiaridade incomodava alguns (cf. Jo 5, 18). É a expressão que Jesus usa para falar com o Pai quando surgiu a angústia da morte: «Abbá, Pai, tudo te é possível; afasta de mim este cálice! Mas não se faça o que Eu quero, e sim o que Tu queres» (Mc 14, 36). Reconheceu-se sempre amado pelo Pai: «por me teres amado antes da criação do mundo» (Jo 17, 24). E, no seu coração humano, Jesus ficou em êxtase ao ouvir o Pai dizer-lhe: «Tu és o meu Filho muito amado, em ti pus todo o meu agrado» (Mc 1, 11).

74. O quarto Evangelho diz que o Filho eterno do Pai esteve sempre «no seio do Pai» [58] ( Jo 1, 18). Santo Ireneu refere-se ao «Filho de Deus [...] existindo desde sempre junto do Pai» [59]. E Orígenes sustenta que o Filho persevera «na contemplação perpétua da profundeza paterna» [60]. Por isso, quando o Filho se fez homem, passou noites inteiras a comunicar com o Pai amado, no cimo da montanha (cf. Lc 6, 12). Dizia: «Tenho de estar na Casa do Meu Pai» ( Lc 2, 49). Vejamos as suas expressões de louvor: «Jesus estremeceu de alegria sob a ação do Espírito Santo e disse: “Bendigo-te, ó Pai, Senhor do Céu e da Terra”» ( Lc 10, 21). E as suas últimas palavras, cheias de confiança, foram: «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito» ( Lc 23, 46).

75. Voltemos agora o nosso olhar para o Espírito Santo, que enche o Coração de Cristo e arde n’Ele. Porque, como dizia São João Paulo II, o Coração de Cristo é «a obra-prima do Espírito Santo» [61]. Não se trata apenas de uma coisa do passado, pois «no Coração de Cristo é viva a ação do Espírito Santo, ao qual Jesus atribuiu a inspiração da sua missão (cf. Lc 4, 18; cf.  Is 61, 1) e do qual na Última Ceia prometera o envio. É o Espírito que ajuda a acolher a riqueza do sinal do lado trespassado de Cristo, do qual brotou a Igreja (cf. Const. Sacrosanctum Concilium, 5)» [62]. Em suma, «só o Espírito Santo pode abrir diante de nós esta plenitude do “homem interior”, que se encontra no Coração de Cristo. Somente Ele pode fazer com que desta plenitude consigam haurir força, gradualmente, também os nossos corações humanos» [63].

76. Se buscamos aprofundar o mistério da ação do Espírito, vemos que Ele geme em nós e diz “Abbá”: «Porque sois filhos, Deus enviou aos nossos corações o Espírito do seu Filho, que clama: “Abbá! – Pai!”» (Gl 4, 6). Com efeito, «esse mesmo Espírito dá testemunho ao nosso espírito de que somos filhos de Deus» (Rm 8, 16).A ação do Espírito Santo no coração humano de Cristo provoca constantemente esta atração ao Pai. E quando pela graça nos une aos sentimentos de Cristo, faz-nos participantes da relação do Filho com o Pai, é o «Espírito que faz de vós filhos adoptivos. É por Ele que clamamos: Abbá, ó Pai!» (Rm 8, 15).

77. Assim, a nossa relação com o Coração de Cristo transforma-se sob o impulso do Espírito, que nos orienta para o Pai, fonte da vida e origem última da graça. O próprio Cristo não deseja que nos detenhamos somente n’Ele. O amor de Cristo é «Revelação da misericórdia do Pai» [64]. O seu desejo é que, impelidos pelo Espírito que brota do seu Coração, “com Ele e n’Ele” nos dirijamos ao Pai. A glória dirige-se ao Pai “por” Cristo [65], “com” Cristo [66] e “em” Cristo [67]. São João Paulo II ensinou que «o Coração do Salvador convida a subir de novo ao amor do Pai, que é a fonte de todo o amor autêntico» [68]. É isto mesmo que o Espírito Santo, chegando a nós a partir do Coração de Cristo, procura alimentar nos nossos corações. Por isso, a Liturgia, sob a ação vivificante do Espírito, dirige-se sempre ao Pai a partir do Coração ressuscitado de Cristo.

Expressões recentes do Magistério

78. O Coração de Cristo esteve presente na história da espiritualidade cristã de diversas maneiras. Na Bíblia e nos primeiros séculos da Igreja, aparecia sob a figura do lado ferido do Senhor, quer como fonte de graça, quer como apelo a um encontro íntimo de amor. Assim reapareceu constantemente no testemunho de muitos santos até aos nossos tempos. Nos últimos séculos, esta espiritualidade tomou a forma de um verdadeiro culto ao Coração do Senhor.

79. Alguns dos meus predecessores referiram-se ao Coração de Cristo e, com expressões variadas, convidaram a unir-se a Ele. No final do século XIX, Leão XIII convidava-nos a consagrarmo-nos a Ele e, na sua proposta, unia ao mesmo tempo o apelo à união com Cristo e a admiração perante o esplendor do seu amor infinito [69]. Cerca de trinta anos depois, Pio XI apresentou esta devoção como o resumo da experiência da fé cristã [70]. Além disso, Pio XII sustentou que o culto do Sagrado Coração exprime de forma excelente, como uma síntese sublime, a nossa adoração a Jesus Cristo [71].

80. Mais recentemente, São João Paulo II apresentou o desenvolvimento deste culto nos séculos passados como uma resposta ao crescimento de formas de espiritualidade rigoristas e desencarnadas que esqueciam a misericórdia do Senhor, mas ao mesmo tempo como um apelo contemporâneo a um mundo que procura construir-se sem Deus: «A devoção ao Sagrado Coração, do modo como se desenvolveu na Europa de há dois séculos, sob o impulso das experiências místicas de Santa Margarida Maria Alacoque, foi a resposta à rigorosidade jansenista, que tinha acabado por menosprezar a infinita misericórdia de Deus. [...] O homem do Ano 2000 tem necessidade do Coração de Cristo para conhecer Deus e para se conhecer a si mesmo; tem necessidade dele para construir a civilização do amor» [72].

81. Bento XVI convidava a reconhecer o Coração de Cristo como uma presença íntima e quotidiana na vida de todos: «Cada pessoa precisa de um “centro” da própria vida, de uma fonte de verdade e de bondade da qual haurir no suceder-se das diversas situações e na fadiga da quotidianidade. Cada um de nós, quando se detém no silêncio, precisa de ouvir não só o palpitar do próprio coração, mas, mais em profundidade, o pulsar de uma presença de confiança, perceptível com os sentidos da fé e contudo muito mais real: a presença de Cristo, coração do mundo» [73].

Aprofundamento e atualidade

82. A imagem expressiva e simbólica do Coração de Cristo não é o único recurso que o Espírito Santo nos dá para encontrar o amor de Cristo, e terá sempre necessidade de ser enriquecida, iluminada e renovada através da meditação, da leitura do Evangelho e do amadurecimento espiritual. Já Pio XII dizia que a Igreja não pretende que «no coração de Jesus se deva ver e adorar a chamada imagem formal, quer dizer, a representação perfeita e absoluta do seu amor divino, não sendo possível, como não é, representar adequadamente por qualquer imagem criada a íntima essência desse amor» [74].

83. A devoção ao Coração de Cristo é essencial para a nossa vida cristã, na medida em que significa a nossa abertura, cheia de fé e de adoração, ao mistério do amor divino e humano do Senhor, até ao ponto de podermos voltar a afirmar que o Sagrado Coração é um compêndio do Evangelho [75]. É preciso lembrar que as visões ou manifestações místicas narradas por alguns dos santos que propuseram apaixonadamente a devoção ao Coração de Cristo não são algo em que os fiéis sejam obrigados a acreditar como se fosse a Palavra de Deus [76]. São belos estímulos que podem motivar e fazer muito bem, embora ninguém se deva sentir obrigado a segui-los se não achar de proveito no seu caminho espiritual. Do mesmo modo, é necessário recordar sempre, como afirmou Pio XII, que não se pode dizer que este culto «deve a sua origem a revelações privadas» [77].

84. A proposta da comunhão eucarística nas primeiras sextas-feiras do mês, por exemplo, era uma mensagem forte numa época em que muitas pessoas deixavam de comungar por não confiarem no perdão divino, na sua misericórdia, e consideravam a comunhão como uma espécie de recompensa para os perfeitos.Naquele contexto jansenista, a promoção desta prática fez muito bem, ajudando-nos a reconhecer na Eucaristia o amor gratuito e próximo do Coração de Cristo que nos chama à união com Ele. Podemos afirmar que hoje também faria muito bem por outra razão: porque no meio do turbilhão do mundo atual e da nossa obsessão pelo tempo livre, do consumo e da distração, dos telefones e das redes sociais, esquecemo-nos de alimentar a nossa vida com a força da Eucaristia.

85. Da mesma forma, ninguém deve sentir-se obrigado a fazer uma hora de adoração às quintas-feiras. Mas como não o recomendar? Quando alguém vive com fervor esta prática, junto de tantos irmãos e irmãs, e encontra na Eucaristia todo o amor do Coração de Cristo, «adora juntamente com a Igreja o símbolo e como que a marca da caridade divina, caridade que com o coração do Verbo encarnado chegou até a amar o género humano» [78].

86. Isto era difícil de compreender para muitos jansenistas, que desprezavam tudo o que era humano, afetivo, corpóreo, e entendiam, em última análise, que esta devoção nos afastava da mais pura adoração ao Deus Altíssimo. Pio XII chamou «falso misticismo» [79] a esta atitude elitista de alguns grupos que viam a Deus tão alto, tão separado, tão distante, que consideravam as expressões sensíveis da piedade popular perigosas e necessitadas de controle eclesiástico.

87. Poder-se-ia afirmar que hoje, mais do que o jansenismo, enfrentamos um forte avanço da secularização que visa um mundo livre de Deus. Acrescenta-se a isso, a multiplicação na sociedade de várias formas de religiosidade sem referência a uma relação pessoal com um Deus de amor, que são novas manifestações de uma “espiritualidade sem carne”. Isto é real. No entanto, devo advertir que, no seio da própria Igreja, o nefasto dualismo jansenista renasceu com novos rostos. Ganhou força renovada nas últimas décadas, mas é uma manifestação daquele gnosticismo que já nos primeiros séculos da fé cristã causava dano à espiritualidade e ignorava a verdade da “salvação da carne”. Por isso, dirijo o meu olhar para o Coração de Cristo e convido a renovar esta devoção. Espero que possa ser atrativa também à sensibilidade atual e que nos ajude assim a enfrentar estes velhos e novos dualismos, aos quais oferece uma resposta adequada.

88. Gostaria de acrescentar que o Coração de Cristo nos liberta, ao mesmo tempo, de um outro dualismo: o de comunidades e pastores concentrados apenas em atividades exteriores, em reformas estruturais desprovidas de Evangelho, em organizações obsessivas, em projetos mundanos, em reflexões secularizadas, em várias propostas apresentadas como requisitos que, por vezes, se pretendem impor a todos.O resultado é, muitas vezes, um cristianismo que esqueceu a ternura da fé, a alegria do serviço, o fervor da missão pessoa-a-pessoa, a cativante beleza de Cristo, a gratidão emocionante pela amizade que Ele oferece e pelo sentido último que dá à vida. Em suma, outra forma de transcendentalismo enganador, igualmente desencarnado.

89. Estas doenças tão atuais, das quais – se nos deixamos aprisionar – nem sequer sentimos o desejo de ser curados, levam-me a propor a toda a Igreja um novo aprofundamento sobre o amor de Cristo representado no seu santo Coração. Aí encontramos todo o Evangelho, aí está sintetizada a verdade em que acreditamos, aí está tudo o que adoramos e procuramos na fé, aí está o que mais precisamos.

90. Perante o Coração de Cristo, é possível voltar à síntese encarnada do Evangelho e viver o que propus há pouco, recordando a amada Santa Teresa do Menino Jesus: «A atitude mais adequada é depositar a confiança do coração fora de nós mesmos, ou seja, na infinita misericórdia de um Deus que ama sem limites e que deu tudo na Cruz de Jesus» [80]. Ela viveu-a intensamente porque descobriu no coração de Cristo que Deus é amor: «A mim deu-me a sua Misericórdia infinita, e é através dela que contemplo e adoro as demais perfeições divinas» [81]. É por isso que a oração mais popular, dirigida como um dardo ao Coração de Cristo, diz simplesmente: «Eu confio em Vós» [82]. Não são necessárias mais palavras.

91. Nos capítulos seguintes, destacaremos dois aspectos fundamentais que a devoção ao Sagrado Coração deve reunir hoje para continuar a alimentar-nos e a aproximar-nos do Evangelho: a experiência espiritual pessoal e o compromisso comunitário e missionário.

CAPÍTULO IV
AMOR QUE DÁ DE BEBER

92. Voltemos à Sagrada Escritura, aos textos inspirados que são o lugar principal onde encontramos a Revelação. Nelas e na Tradição viva da Igreja está contido o que o próprio Senhor nos quis dizer para toda a história. A partir da leitura de textos do Antigo e do Novo Testamento, recolheremos alguns dos efeitos da Palavra no longo caminho espiritual do Povo de Deus.

Sede do amor de Deus

93. A Bíblia mostra que uma abundância de água vivificante foi anunciada ao povo que tinha caminhado pelo deserto e esperava a libertação: «Tirareis água com alegria das fontes da salvação» (Is 12, 3). Os anúncios messiânicos assumiram a forma de uma fonte de água purificadora: «Derramarei sobre vós uma água pura e sereis purificados [...] introduzirei em vós um espírito novo» (Ez 36, 25-26). É a água que restituirá ao povo uma existência plena, como uma fonte que jorra do templo e, ao passar, derrama vida e saúde: «Eis que havia à beira da torrente grande quantidade de árvores, em cada uma das margens. [...] Por onde quer que a torrente passar, todo o ser vivo que se move viverá [...] porque aonde quer que esta água chegar, tornar-se-á salubre; e a vida desenvolver-se-á por toda a parte aonde ela chegar» (Ez 47, 7.9).

94. A festa judaica das Tendas ( Sukkot), que comemorava os quarenta anos no deserto, tinha gradualmente assumido o símbolo da água como elemento central, e previa para cada manhã um rito de oferenda de água, que se tornava muito solene no último dia da festa: fazia-se uma grande procissão até ao templo onde, finalmente, eram dadas sete voltas em torno do altar e, com grande alvoroço, se oferecia água a Deus [83].

95. O anúncio da chegada do tempo messiânico é apresentado como uma fonte aberta para o povo: «Derramarei sobre a casa de David e sobre os habitantes de Jerusalém um espírito de benevolência e de súplica. Eles contemplarão aquele a quem trespassaram. [...] Naquele dia, haverá uma fonte aberta para a casa de David e para os habitantes de Jerusalém, para a purificação do pecado e da impureza» (Zc 12, 10; 13, 1).

96. Um homem trespassado, uma fonte aberta, um espírito de benevolência e de súplica. Os primeiros cristãos inevitavelmente viam esta promessa cumprida no lado aberto de Cristo, fonte de onde brota a vida nova. Ao percorrermos o Evangelho de João, vemos como aquela profecia se cumpriu em Cristo.Contemplamos o seu lado trespassado, de onde jorrava a água do Espírito: «Um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e água» (Jo 19, 34). E o evangelista acrescenta: «Hão-de olhar para aquele que trespassaram» (Jo 19, 37). Retoma assim o anúncio do profeta que prometia ao povo uma fonte aberta em Jerusalém, quando olhassem para o trespassado (cf. Zc 12, 10). A fonte aberta é o lado ferido de Jesus Cristo.

97. Notemos que o próprio Evangelho anuncia este momento sagrado, precisamente «no último dia, o mais solene da festa» das Tendas (Jo 7, 37). Naquele momento, Jesus bradou ao povo que celebrava, na grande procissão: «Se alguém tem sede, venha a mim […] hão de correr do seu coração rios de água viva» (Jo 7, 37-38). Para isso, era preciso que chegasse a sua “hora”, «porque Jesus ainda não tinha sido glorificado» (Jo 7, 39). Tudo se cumpriu na fonte transbordante da Cruz.

98. No Apocalipse, reaparece tanto o Trespassado – «Todos os olhos o verão, até mesmo os que o trespassaram» (Ap 1, 7) –, como a fonte aberta – «O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba gratuitamente da água da vida» (Ap 22, 17).

99. O lado trespassado é ao mesmo tempo a sede do amor, um amor que Deus declarou ao seu povo com tantas palavras diferentes que vale a pena recordar:

«És precioso aos meus olhos, […] te estimo e te amo» (Is 43, 4).

«Acaso pode uma mulher esquecer-se do seu bebé, não ter carinho pelo fruto das suas entranhas? Ainda que ela se esquecesse dele, Eu nunca te esqueceria. Eis que Eu gravei a tua imagem na palma das minhas mãos» (Is 49, 15-16).

«Ainda que os montes sejam abalados e tremam as colinas, o meu amor por ti nunca mais será abalado, e a minha aliança de paz nunca mais vacilará» (Is 54, 10).

«Amei-te com um amor eterno. Por isso, dilatei a misericórdia para contigo» (Jr 31, 3).

«O Senhor, teu Deus, está no meio de ti como poderoso salvador! Ele exulta de alegria por tua causa, pelo seu amor te renovará.Ele dança e grita de alegria por tua causa» (Sf 3, 17).

100. O profeta Oseias chega a falar do coração de Deus: «Segurava-os com laços humanos, com laços de amor» (Os 11, 4). Por causa desse mesmo amor desprezado, podia dizer: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» (Os 11, 8). Mas sempre vencerá a misericórdia (cf. Os 11, 9), que alcançará a sua expressão máxima em Cristo, palavra definitiva de amor.

101. No Coração trespassado de Cristo estão concentradas, escritas na carne, todas as expressões de amor das Escrituras. Não se trata de um amor simplesmente declarado, mas o seu lado aberto é fonte de vida para o amado; é aquela fonte que sacia a sede do seu povo. Como ensinou São João Paulo II, «os elementos essenciais desta devoção pertencem também de modo permanente à espiritualidade da Igreja ao longo da sua história; porque desde o princípio a Igreja elevou o seu olhar para o Coração de Cristo trespassado na Cruz» [84].

Ressonâncias da Palavra na história

102. Consideremos alguns dos efeitos que esta Palavra de Deus produziu na história da fé cristã. Vários Padres da Igreja, sobretudo da Ásia Menor, mencionaram a chaga do lado de Jesus como a origem da água do Espírito: a Palavra, a sua graça e os sacramentos que a comunicam. A força dos mártires vive da «fonte celeste de água viva que brota das entranhas de Cristo» [85], ou, como traduz Rufino, «das fontes celestes e eternas que procedem das entranhas de Cristo» [86]. Os fiéis, que renascemos pelo Espírito, viemos dessa fenda do rochedo, «saímos do ventre de Cristo» [87]. O seu lado ferido, que interpretamos como o seu coração, está cheio do Espírito Santo, e a partir dele chegam até nós rios de água viva: «Em Cristo permanece a fonte de todo o Espírito Santo» [88]. Mas o Espírito que recebemos não nos afasta do Senhor ressuscitado, antes nos enche d’Ele, porque, ao bebermos do Espírito, bebemos o próprio Cristo: «Bebe Cristo, porque é a rocha que jorra água; bebe Cristo, porque é a fonte da vida; bebe Cristo, porque é o rio cujo ímpeto alegra a cidade de Deus; bebe Cristo, porque é a paz; bebe Cristo, porque do seu ventre brota um rio de água viva» [89].

103. Santo Agostinho abriu o caminho para a devoção ao Sagrado Coração como lugar de encontro pessoal com o Senhor. Ou seja, para ele o lado de Cristo não é só fonte de graça e de sacramentos, mas personaliza-o, apresentando-o como símbolo da união íntima com Cristo, como lugar de um encontro amoroso. É aí que reside a origem da sabedoria mais preciosa, que é conhecê-Lo. Com efeito, Agostinho escreve que João, o amado, quando inclinou a sua cabeça sobre o peito de Jesus, durante a última ceia, aproximou-se do lugar secreto da sabedoria [90]. Não se trata de uma simples contemplação intelectual de uma verdade teológica. São Jerónimo explica que uma pessoa capaz de contemplar «não retira das correntes de água nenhum deleite, mas bebe a água viva do lado do Senhor» [91].

104. São Bernardo retomou o simbolismo do lado trespassado do Senhor, entendendo-o explicitamente como revelação e dom do amor do seu Coração. Através da chaga, ele torna-se acessível a cada um de nós e é possível fazer nosso o grande mistério do amor e da misericórdia: «O que a mim me falta, eu extraio das entranhas do Senhor, pois estas transbordam misericórdia e não faltam fendas pelas quais ela passa. Trespassaram-lhe as mãos e os pés, perfuraram-lhe o lado com uma lança. E por essas fendas posso extrair mel da pedra e óleo da rocha duríssima, isto é, posso saborear e ver quão suave é o Senhor [...] O ferro trespassou-lhe a alma, e aproximou-se do seu coração, para que não deixe já de saber como se compadecer das minhas fraquezas. O segredo do seu coração é patente através das chagas do corpo, é patente o grande sacramento da piedade, são patentes as vísceras de misericórdia do nosso Deus» [92].

105. Isto reaparece de forma especial em Guilherme de Saint-Thierry, o qual convidava a entrar no Coração de Jesus, que nos alimenta no seu próprio seio [93]. Não é de admirar, se recordamos que para este autor «a arte do amor é a arte das artes [...]. Este mesmo amor é incutido pelo Criador [...]. Com efeito, o amor é uma força da alma, que a conduz como que por um peso natural ao lugar e ao fim que lhe são próprios» [94]. Esse lugar que lhe é próprio, onde o amor reina em plenitude, é o Coração de Cristo: «Aonde pois, Senhor, conduzis aqueles que abraçais e estreitais em vossos braços, senão para o vosso coração? O vosso coração, Jesus, é aquele doce maná da vossa divindade (cf. Heb 9, 4), que guardais no vosso interior, no cofre áureo da vossa alma que supera toda a sabedoria. Felizes os que conduzis até lá com o vosso abraço. Felizes os que, imersos nestas profundezas, foram escondidos por Vós dentro do Vosso coração» [95].

106. São Boaventura une as duas linhas espirituais em torno do Coração de Cristo: ao mesmo tempo que o apresenta como fonte dos sacramentos e da graça, propõe que esta contemplação se torne uma relação de amigos, um encontro pessoal de amor.

107. Por um lado, ajuda-nos a reconhecer a beleza da graça e dos sacramentos que brotam daquela fonte de vida que é o lado ferido do Senhor: «Para que do lado de Cristo morto na cruz se formasse a Igreja e se cumprisse a palavra da Escritura que diz: “Hão de olhar para Aquele que trespassaram”, a divina providência permitiu que um dos soldados lhe abrisse com a lança o lado sacrossanto e dele fizesse brotar sangue e água. Este é o preço da nossa salvação, saído daquela divina fonte, isto é, do íntimo do seu Coração, para dar aos sacramentos da Igreja o poder de conferir a vida da graça e se tornar para aqueles que vivem em Cristo uma fonte de água viva que jorra para a vida eterna» [96].

108. Depois convida-nos a dar mais um passo, para que o acesso à graça não se torne algo de mágico, ou uma espécie de emanação neoplatónica, mas uma relação direta com Cristo, habitando no seu Coração, pois quem bebe é amigo de Cristo, é um coração amoroso: «Levanta-te, pois, tu que amas a Cristo, sê como a pomba que faz o seu ninho na borda do rochedo, e aí, como o pássaro que encontrou sua morada, não cesses de estar vigilante; aí esconde, como a andorinha, os filhos nascidos do casto amor» [97].

A difusão da devoção ao Coração de Cristo

109. O lado trespassado, onde reside o amor de Cristo, do qual, por sua vez, brota a vida da graça, assumiu gradualmente a forma do coração, sobretudo na vida monástica. Sabemos que, ao longo da história, o culto ao Coração de Cristo não se manifestou de modo igual, e que os aspectos desenvolvidos nos tempos modernos, relacionados com diversas experiências espirituais, não podem ser extrapolados para as formas medievais e muito menos para as formas bíblicas, nas quais podemos vislumbrar as sementes deste culto. No entanto, hoje a Igreja não despreza nenhum dos bens que o Espírito Santo nos deu ao longo dos séculos, sabendo que será sempre possível reconhecer em certos pormenores da devoção um sentido mais claro e pleno, ou compreender e desvendar novos aspectos dela.

110. Várias mulheres santas relataram experiências de encontro com Cristo, caracterizado pelo repouso no Coração do Senhor, fonte de vida e de paz interior. É o caso de Santa Lutgarda, Santa Matilde de Hackeborn, Santa Ângela de Foligno, Juliana de Norwich, entre outras. Santa Gertrudes de Helfta, monja cisterciense, contou um momento de oração durante o qual reclinou a cabeça sobre o Coração de Cristo e escutou os seus batimentos. Num diálogo com São João Evangelista, ela pergunta-lhe por que razão, no seu Evangelho, não fala do que viveu quando teve a mesma experiência. Gertrudes conclui que «a doçura destes batimentos foi reservada aos tempos modernos, para que, ao escutá-los, o mundo envelhecido e morno possa renovar-se no amor de Deus» [98]. Poderíamos pensar que se trata de um anúncio referente ao nosso tempo, um apelo a reconhecer como este mundo se tornou “velho”, necessitado de receber a mensagem sempre nova do amor de Cristo? Santa Gertrudes e Santa Matilde foram consideradas entre «as mais íntimas confidentes do Sagrado Coração» [99].

111. Os monges cartuxos, encorajados sobretudo por Ludolfo da Saxónia, encontraram na devoção ao Sagrado Coração um meio de encher de afeto e proximidade a sua relação com Jesus Cristo. Quem entra pela ferida do seu Coração é abrasado em chamas de afeto. Santa Catarina de Sena escreveu que os sofrimentos que o Senhor suportou não são algo que possamos presenciar, mas que o Coração aberto de Cristo é para nós a possibilidade de um encontro real e pessoal com tanto amor: «Eis quanto eu manifestei na chaga do meu peito, no momento em que compreendeste o segredo do meu coração. Fiz ver que meu amor por vós é mais profundo de quanto possa indicar a dor passageira» [100].

112. A devoção ao Coração de Cristo transcendeu gradualmente a vida monástica e encheu a espiritualidade de santos mestres, pregadores e fundadores de congregações religiosas que a difundiram nas regiões mais remotas da terra [101].

113. Particularmente interessante foi a iniciativa de São João Eudes, que «depois de ter pregado com os seus missionários uma fervorosíssima missão em Rennes, conseguiu que o bispo aprovasse nessa diocese a celebração da festa do Coração Adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo. Foi a primeira vez que esta festa foi oficialmente autorizada na Igreja. Mais tarde, os bispos de Coutances, de Evreux, de Bayeux, de Lisieux e de Rouen autorizaram a mesma festa para as suas respectivas dioceses entre os anos de 1670 e 1671» [102].

São Francisco de Sales

114. Nos tempos modernos, destaca-se o contributo de São Francisco de Sales. Ele contemplou muitas vezes o Coração aberto de Cristo, que nos convida a habitar dentro dele numa relação pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida. Podemos ver no pensamento deste santo doutor como, face a uma moral rigorista ou a uma religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça. É assim que ele se exprime na sua proposta à baronesa de Chantal: «É para mim bem claro que não permaneceremos mais em nós mesmos [...] habitaremos para sempre no lado trespassado do Salvador, pois sem ele não só não podemos, mas, mesmo que pudéssemos, não quereríamos fazer nada» [103].

115. Para ele, a devoção estava longe de se tornar uma forma de superstição ou uma objetivação indevida da graça, porque significava um convite a uma relação pessoal em que cada um se sente único perante Cristo, reconhecido na sua realidade irrepetível, pensado por Cristo e valorizado de forma direta e exclusiva: «Este coração tão adorável e tão amável do nosso Mestre, todo ardente de amor por nós, um coração no qual veremos escritos todos os nossos nomes [...]. Certamente isto é um tema de grande consolação: Que sejamos tão amados por Nosso Senhor a ponto de nos levar sempre no seu Coração» [104]. Este nome próprio escrito no Coração de Cristo foi o modo como São Francisco de Sales procurou simbolizar até onde o amor de Cristo por cada um não é abstrato ou genérico, mas implica uma personalização em que o fiel se sente valorizado e reconhecido em si mesmo: «Quão belo é este Céu, agora que o Salvador é como um sol e o seu peito como uma fonte de amor da qual os bem-aventurados bebem à vontade! Cada um vai lá dentro olhar e vê o seu nome escrito em caracteres de amor, que só o amor sabe ler e que só o amor ali gravou. Ah, Deus! Minha querida filha, não estarão lá os nossos? Estarão, sem dúvida; pois, embora o nosso coração não tenha amor, tem o desejo do amor e o princípio do amor» [105].

116. Ele considerava esta experiência tão fundamental para uma vida espiritual que colocava esta convicção entre as grandes verdades da fé: «Sim, minha querida Filha, Ele pensa em ti, e não só em ti, mas no menor cabelo da tua cabeça: é um artigo de fé do qual não se pode duvidar» [106]. A consequência disto é que o fiel se torna capaz de um completo abandono no Coração de Cristo, onde encontra repouso, consolação e força: «Ó Deus! Que felicidade estar assim entre os braços e o peito [do Salvador] […]. Permanece assim, querida Filha, e enquanto os demais comem na mesa do Salvador diferentes alimentos, repousa e reclina, com a mais simples confiança, como outro pequeno São João, a tua cabeça, a tua alma, o teu espírito sobre o peito amoroso deste querido Senhor» [107]. «Espero que estejas na caverna da pomba e no lado trespassado do nosso querido Salvador [...]. Quão bom é este Senhor, minha querida Filha! Quão amável é o seu Coração! Moremos ali, naquele santo domicílio» [108].

117. Mas, fiel ao seu ensinamento sobre a santificação na vida ordinária, propõe que esta seja vivida no meio das atividades, das tarefas e dos deveres do quotidiano: «Perguntais-me como as almas que são levadas na oração a esta santa simplicidade e a este perfeito abandono em Deus devem comportar-se em todos os seus atos? Respondo que, não só na oração, mas na conduta de toda a sua vida, devem caminhar invariavelmente em espírito de simplicidade, abandonando e entregando toda a sua alma, as suas ações e os seus sucessos à vontade de Deus, com um amor de perfeita e absoluta confiança, abandonando-se à graça e aos cuidados do amor eterno que a Divina Providência sente por elas» [109].

118. Por todas estas razões, no momento de pensar num símbolo que sintetizasse a sua proposta de vida espiritual, conclui: «Pensei então, querida Madre, se estiverdes de acordo, que devemos tomar como escudo um único coração trespassado por duas flechas, encerrado numa coroa de espinhos» [110].

Uma nova declaração de amor

119. Foi sob a influência salutar da espiritualidade de São Francisco de Sales que tiveram lugar os acontecimentos de Paray-le-Monial, no final do século XVII. Santa Margarida Maria Alacoque relatou importantes aparições entre o fim de dezembro de 1673 e junho de 1675. É fundamental a declaração de amor que se destaca na primeira grande aparição. Jesus diz: «O meu divino Coração está tão abrasado de amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las por teu meio, e manifestar-se-lhes para os enriquecer de seus preciosos tesouros, que eu te mostro a ti» [111].

120. Santa Margarida Maria resume tudo isto de uma forma poderosa e fervorosa: «Ali me descobriu as maravilhas do seu amor e os segredos insondáveis do seu Sagrado Coração, que sempre me tinha conservado escondidos até àquele momento em que mos abriu pela primeira vez, mas de modo tão real e sensível que me não deixou lugar a nenhuma dúvida» [112]. Nas declarações seguintes, reafirma-se a beleza desta mensagem: «Ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que ele tinha chegado em amar os homens» [113].

121. Este reconhecimento intenso do amor de Jesus Cristo que Santa Margarida Maria transmitiu oferece-nos valiosos estímulos para a nossa união com Ele. O que não significa que nos sintamos obrigados a aceitar ou assumir todos os pormenores desta proposta espiritual, onde, como muitas vezes acontece, se misturam com a ação divina elementos humanos relacionados com os nossos próprios desejos, inquietações e imagens interiores [114]. Tal proposta deve ser sempre relida à luz do Evangelho e de toda a rica tradição espiritual da Igreja, reconhecendo ao mesmo tempo o bem que fez em tantos irmãos e irmãs. Isto permite-nos reconhecer os dons do Espírito Santo no seio dessa experiência de fé e de amor. Mais importante do que os pormenores é o núcleo da mensagem que nos é transmitida e pode ser resumido nas palavras que Santa Margarida ouviu: «Eis aqui este Coração que tanto tem amado os homens, que a nada se tem poupado até se esgotar e consumir para lhes testemunhar o seu amor» [115].

122. Esta manifestação é um convite a um crescimento no encontro com Cristo, graças a uma confiança sem reservas, até chegarmos a uma união plena e definitiva: «É preciso que o Divino Coração de Jesus substitua de tal forma o nosso, de modo que só Ele viva e atue em nós e por nós; que a sua vontade [...] possa atuar absolutamente sem resistência da nossa parte; e, finalmente, que os seus afetos, pensamentos e desejos estejam no lugar dos nossos, e sobretudo o seu amor, que se amará a si mesmo em nós e por nós. E assim, sendo este amável Coração tudo em todas as coisas, poderemos dizer com São Paulo que já não somos nós que vivemos, mas é Ele que vive em nós» [116].

123. Efetivamente, na primeira mensagem recebida, ela apresenta esta experiência de uma forma mais pessoal, mais concreta, cheia de fogo e de ternura: «Pediu-me o meu coração; eu roguei-lhe que o tomasse, o que ele fez, e meteu-o no seu adorável Coração, no qual mo mostrou como um atomozinho que se consumia naquela fornalha ardente» [117].

124. Num outro ponto, notamos que aquele que se entrega a nós é Cristo ressuscitado, cheio de glória, cheio de vida e de luz. Embora em diversos momentos fale dos sofrimentos que suportou por nós e das ingratidões que recebe, não sobressaem aqui o sangue e as feridas sofridas, mas a luz e o fogo do Vivente. As feridas da Paixão, que não desaparecem, são transfiguradas. Assim, o Mistério da Páscoa é aqui expresso na sua totalidade: «Uma vez, entre outras, quando estava o Santíssimo exposto, […] Jesus Cristo, meu doce Mestre, apareceu-me todo radiante de glória, com suas cinco chagas, brilhantes como cinco sóis; e a sua sagrada humanidade lançava chamas de todos os lados, mas sobretudo de seu sagrado peito, que parecia uma fornalha: abrindo-o, descobriu-me seu amantíssimo e amabilíssimo Coração, que era a fonte viva daquelas chamas. Foi então que ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que ele tinha chegado em amar aos homens, de quem não recebia senão ingratidões e frieza» [118].

São Cláudio de La Colombière

125. Quando São Cláudio de La Colombière soube das experiências de Santa Margarida, tornou-se imediatamente seu defensor e divulgador. Ele teve um papel especial na compreensão e difusão desta devoção ao Sagrado Coração, mas também na sua interpretação à luz do Evangelho.

126. Enquanto algumas expressões de Santa Margarida, se mal entendidas, poderiam levar a confiar demasiado nos próprios sacrifícios e ofertas, São Cláudio evidencia que a contemplação do Coração de Cristo, se for autêntica, não provoca complacência em si mesmo nem vanglória nas experiências ou esforços humanos, mas um abandono indescritível em Cristo que enche a vida de paz, segurança e decisão. Ele exprimiu muito bem esta confiança absoluta numa célebre oração:

«Meu Deus, estou tão convencido que velais sobre aqueles que em Vós confiam, e que nada pode faltar a quem de Vós tudo espera, que resolvi viver o futuro sem preocupação alguma, e descarregar sobre Vós todas as minhas preocupações [...]. O que nunca perderei é a esperança; conservá-la-ei até ao último instante da minha vida, embora todas as potências infernais se esforcem em vão por me roubar [...]. Esperem outros a felicidade das suas riquezas e talentos; confiem na inocência da sua vida, no rigor da sua penitência, no número das suas boas obras ou no fervor das suas orações […]. Quanto a mim, toda a minha confiança está fundada nesta minha mesma confiança. Ela nunca enganou ninguém. [...] E assim, estou seguro de que serei eternamente bem-aventurado, porque espero firmemente sê-lo, e é de Vós, ó meu Deus, que o espero» [119].

127. São Cláudio escreveu uma nota em janeiro de 1677, encabeçada por algumas linhas que se referem à segurança que sentia em relação à sua própria missão: «Reconheci que Deus quer servir-se de mim, procurando o cumprimento dos seus desejos relativamente à devoção que me sugeriu uma pessoa, com quem Ele se comunica confidencialmente, e em favor da qual Ele quis servir-se da minha fraqueza. Já a inspirei a muitas pessoas» [120].

128. É importante notar como, na espiritualidade de La Colombière, há uma bela síntese entre a rica e bela experiência espiritual de Santa Margarida e a contemplação muito concreta dos Exercícios inacianos. Ele escreve no início da terceira semana do mês dos Exercícios:«Duas coisas me comoveram sumamente e me mantiveram ocupado todo o tempo. A primeira é a disposição com que Jesus Cristo sai ao encontro daqueles que o procuram […]. Seu Coração está mergulhado num mar de amargura; todas as paixões estão soltas dentro dele, toda a natureza está desconcertada, e através de todas essas desordens e de todas essas tentações, o seu Coração se volta diretamente para Deus; ele não dá um passo em falso e não hesita em tomar o lado que lhe é sugerido pela virtude e pela mais alta virtude. […] A segunda coisa é a disposição deste mesmo Coração a respeito de Judas que o traiu, dos apóstolos que o abandonaram de modo covarde, dos sacerdotes e dos outros autores da perseguição a que foi sujeito. E tudo isto não foi capaz de despertar n’Ele o mínimo sentimento de ódio ou de indignação. […] Assim, represento para mim mesmo aquele Coração sem amargura, sem azedume, cheio de verdadeira ternura para com os seus inimigos» [121].

São Charles de Foucauld e Santa Teresa do Menino Jesus

129. São Charles de Foucauld e Santa Teresa do Menino Jesus, sem o pretenderem, reformularam certos elementos da devoção ao Coração de Cristo, ajudando-nos a compreendê-la de uma forma ainda mais fiel ao Evangelho. Vejamos agora como se exprime esta devoção nas suas vidas. No próximo capítulo voltaremos a eles para mostrar a originalidade da dimensão missionária que ambos desenvolveram de modos diferentes.

Iesus Caritas

130. Em Louye, São Charles de Foucauld fazia visitas ao Santíssimo Sacramento com a sua prima, Madame de Bondy, e um dia ela indicou-lhe uma imagem do Sagrado Coração [122]. Para a conversão de Charles, esta sua prima foi fundamental, como ele reconhece: «Já que o bom Deus fez de ti o primeiro instrumento das suas misericórdias para comigo, todas as suas misericórdias vêm de ti. Se não me tivesses convertido, levado a Jesus e ensinado pouco a pouco, palavra por palavra, tudo o que é piedoso e bom, estaria eu onde estou hoje?» [123]. Mas, o que ela despertou nele foi exatamente a consciência ardente do amor de Jesus. Estava tudo ali, e era o mais importante. E isso concentrava-se particularmente na devoção ao Coração de Cristo, onde ele encontrava uma misericórdia sem limites: «Esperemos na misericórdia infinita d’Aquele cujo coração me fizestes conhecer» [124].

131. Depois, o seu diretor espiritual, Padre Henri Huvelin, ajudá-lo-á a aprofundar este precioso mistério: «Este Coração abençoado do qual me falaste tantas vezes» [125]. No dia 6 de junho de 1889, Charles consagra-se ao Sagrado Coração, no qual encontrava um amor absoluto. Diz a Cristo: «Cumulastes-me de tantos benefícios que me parece ser uma ingratidão para com o vosso coração não crer que ele esteja pronto a cumular-me de todo o bem, por maior que seja, e que o seu amor e a sua generosidade não têm medida» [126]. Será eremita «sob o nome do Sagrado Coração» [127].

132. No dia 17 de maio de 1906, no qual já não pôde mais celebrar a missa por se encontrar sozinho, Frei Charles escreveu esta promessa: «Deixar viver em mim o Coração de Jesus, de modo que já não seja eu a viver, mas o Coração de Jesus que viva em mim, como vivia em Nazaré» [128]. A sua amizade com Jesus, de coração a coração, não tinha nada de devocionismo íntimo. Era a raiz dessa vida despojada de Nazaré, pela qual Charles queria imitar Cristo e configurar-se com Ele. Esta terna devoção ao Coração de Cristo teve consequências muito concretas no seu estilo de vida e a sua Nazaré foi alimentada por esta relação muito pessoal com o Coração de Cristo.

Santa Teresa do Menino Jesus

133. Tal como São Charles de Foucauld, Santa Teresa do Menino Jesus respirou a enorme devoção que inundava a França no século XIX. Padre Almire Pichon foi o diretor espiritual da sua família e foi considerado um grande apóstolo do Sagrado Coração. Uma irmã sua tomou o nome religioso de “Maria do Sagrado Coração”, e o mosteiro em que Santa Teresa entrou era dedicado ao Sagrado Coração. No entanto, a sua devoção assumiu algumas características próprias, que iam além das formas pelas quais se expressava naquela época.

134. Quando tinha quinze anos, encontrou uma maneira de resumir a sua relação com Jesus: «Aquele cujo coração batia em uníssono com o meu» [129]. Dois anos mais tarde, quando lhe falavam de um Coração coroado de espinhos, acrescentou numa carta: «Sabes, eu não vejo o Sagrado Coração como toda a gente, penso que o coração do meu Esposo é só meu como o meu é só d’Ele e então falo-Lhe na solidão desta deliciosa intimidade esperando contemplá-l’O um dia face a face» [130].

135. Num poema, ela exprimiu o sentido da sua devoção, feita mais de amizade e confiança do que de segurança nos seus próprios sacrifícios:

«Preciso de um coração ardente de ternura,
que me dê a sua força sem reserva,
que ame tudo em mim, mesmo a minha fraqueza...,
que nunca me abandone de noite nem de dia. […]
Preciso de um Deus que se revista da mesma natureza
que se torne meu irmão e possa sofrer! […]
Ah! bem sei que todas as nossas justiças
não têm a teus olhos nenhum valor […].
E eu escolho para meu purgatório
o teu Amor ardente, ó Coração do meu Deus» [131].

136. Talvez o texto mais relevante para compreender o significado da sua devoção ao Coração de Cristo seja a carta que escreveu, três meses antes de falecer, ao seu amigo Maurice Bellière: «Quando vejo Madalena avançar na presença dos numerosos convidados, banhar com as suas lágrimas os pés do Mestre adorado que toca pela primeira vez, sinto que o coração delacompreendeu os abismos de amor e de misericórdia do Coração de Jesus, e que, por muito pecadora que ela seja, este Coração de amor está não só disposto a perdoar-lhe, mas ainda a prodigalizar-lhe os benefícios da sua intimidade divina, a elevá-la até aos mais altos cumes da contemplação. Ah! meu querido Irmãozinho, desde que me foi dado compreender também o amor do Coração de Jesus, confesso que ele afastou do meu coração todo o temor. A lembrança das minhas faltas humilha-me, leva-me a nunca me apoiar na minha força que é só fraqueza, mas esta lembrança fala-me ainda mais de misericórdia e de amor» [132].

137. As mentes moralizantes, que pretendem controlar a misericórdia e a graça, diriam que Teresa podia afirmar isto porque era uma santa, mas que um pecador não poderia dizer o mesmo. Ao fazê-lo, retiram à espiritualidade de Teresa a sua bela novidade que reflete o coração do Evangelho. Infelizmente, tornou-se comum em alguns círculos cristãos tentar aprisionar o Espírito Santo num esquema que lhes permita ter tudo sob a sua supervisão. Entretanto, esta sábia Doutora da Igreja desmente-os e contradiz diretamente esta interpretação redutiva com palavras muito claras: «Ainda que eu tivesse cometido todos os crimes possíveis, mesmo assim teria sempre a mesma confiança: sinto que toda essa multidão de ofensas seria como uma gota de água lançada num braseiro ardente» [133].

138. À Irmã Maria, que a elogiava pelo seu amor generoso a Deus, disposto até ao martírio, responde longamente numa carta que é hoje um dos grandes marcos da história da espiritualidade. Esta página deveria ser lida milhares de vezes pela sua profundidade, clareza e beleza. Nela, Teresa ajuda a Irmã “do Sagrado Coração” a não concentrar esta devoção no âmbito da dor, já que alguns entendiam a reparação como uma espécie de primado dos sacrifícios ou de cumprimento moralista. Pelo contrário, ela resume tudo na confiança como a melhor oferta, agradável ao Coração de Cristo: «Os meus desejos de martírio não são nada, não são eles que me dão a confiança ilimitada que sinto no coração. Para dizer a verdade, são as riquezas espirituais que tornam alguém injusto, quando descansamos nelas com complacência, e cremos que são algo de grande. […] O que lhe agrada é ver-me amar a minha pequenez e a minha pobreza, é a esperança cega que tenho na sua misericórdia…. Eis o meu único tesouro […]. Se desejais sentir alegria, sentir atração pelo sofrimento, é a vossa consolação que procurais […]. Compreendei que para amar Jesus, para ser a sua vítima de amor, quanto mais fraco se é, sem desejos, nem virtudes, tanto mais puro se está para as operações deste Amor consumador e transformante […]. Oh, como eu queria fazer-vos compreender o que sinto! Só a confiança e nada mais do que a confiança tem de conduzir-nos ao Amor» [134].

139. Em muitos dos seus textos, percebe-se a sua luta contra formas de espiritualidade demasiadamente centradas no esforço humano, no mérito próprio, na oferta de sacrifícios, em certas tarefas para “ganhar o céu”. Para Teresa, «o mérito não consiste em fazer nem em dar muito, mas antes em receber» [135]. Leiamos mais uma vez alguns destes textos muito significativos onde ela insiste num outro caminho, que é um caminho simples e rápido para ganhar o Senhor através do coração.

140. Assim escreve à sua irmã Leónia: «Garanto-te que Deus é muito melhor do que tu imaginas. Contenta-se com um olhar, com um suspiro de amor… Quanto a mim acho a perfeição muito fácil de praticar, porque compreendi que nada há a fazer senão ganhar Jesus pelo coração… Vê uma criancinha que acaba de arreliar a mãe […]. Se lhe estende os bracinhos sorrindo e dizendo: “Dá-me um beijo, não torno mais a fazer isso”, poderá a mãe deixar de a apertar contra o coração com meiguice e esquecer as suas travessuras?… No entanto, sabe muito bem que o seu querido filho cairá de novo na próxima ocasião, mas não tem importância: se ele tornar a ganhá-la pelo coração, nunca será castigado» [136].

141. Numa carta ao padre Adolphe Roulland diz: «O meu caminho é todo de confiança e de amor, não compreendo as almas que têm medo de um Amigo tão terno. Às vezes quando leio certos tratados espirituais em que a perfeição é apresentada através de inúmeras dificuldades, rodeada por uma quantidade de ilusões, a minha pobre inteligência cansa-se muito depressa, fecho o sábio livro que me quebra a cabeça e me seca o coração e pego na Sagrada Escritura. Então tudo me parece luminoso, uma só palavra revela à minha alma horizontes infinitos, a perfeição parece-me fácil, vejo que basta reconhecer o próprio nada e abandonar-se como uma criança nos braços de Deus» [137].

142. E dirigindo-se ao padre Maurice Bellière, a propósito de um pai de família, observa: «Não acredito que o coração do ditoso pai possa resistir à confiança filial do filho de quem conhece a sinceridade e o amor. Não ignora todavia que o filho mais uma vez cairá nas mesmas faltas, mas está disposto a perdoar-lhe sempre, se o filho sempre lhe falar ao coração» [138].

Ressonâncias na Companhia de Jesus

143. Vimos como São Cláudio de La Colombière relacionava a experiência espiritual de Santa Margarida com a proposta dos Exercícios Espirituais. Penso que o lugar do Sagrado Coração na história da Companhia de Jesus mereça algumas breves palavras.

144. A espiritualidade da Companhia de Jesus sempre propôs um «conhecimento interno do Senhor […] para que mais o ame e o siga» [139]. Nos seus Exercícios Espirituais, Santo Inácio convida a colocarmo-nos diante do Evangelho que nos diz sobre Jesus: «ferido com a lança o seu lado, manou água e sangue» [140]. Quando o exercitante se encontra diante do lado ferido de Cristo, Inácio propõe-lhe entrar no Coração de Cristo. Trata-se de um caminho para amadurecer o próprio coração pela mão de um “mestre dos afetos”, segundo a expressão usada por São Pedro Fabro numa das suas cartas a Santo Inácio [141]. O jesuíta Juan Alfonso de Polanco também menciona esta expressão na sua biografia de Santo Inácio: «[o Cardeal Contarini] reconhecia ter encontrado no Padre Inácio um mestre dos afetos» [142]. Os colóquios que Santo Inácio propõe são uma parte essencial desta educação do coração, porque sentimos e saboreamos com o coração a mensagem do Evangelho e conversamos sobre ela com o Senhor. Santo Inácio diz que podemos comunicar as nossas coisas ao Senhor e pedir-lhe conselho sobre elas. Qualquer exercitante pode reconhecer que nos Exercícios há um diálogo de coração para coração.

145. Santo Inácio termina as contemplações aos pés do Crucificado, convidando o exercitante a dirigir-se com grande afeto ao Senhor crucificado e perguntar-lhe «como um amigo fala a outro, ou um servo a seu senhor» [143] o que deveria fazer por Ele. O itinerário dos Exercícios culmina na “Contemplação para alcançar amor”, da qual brota a ação de graças e a oferta da “memória, do entendimento e da vontade” ao Coração que é fonte e origem de todo o bem [144]. Tal conhecimento interior do Senhor não se constrói com as nossas luzes e esforços, mas pede-se como um dom.

146. Esta mesma experiência está na origem de uma longa cadeia de padres jesuítas que se referiram explicitamente ao Coração de Jesus, como São Francisco de Borja, São Pedro Fabro, Santo Afonso Rodrigues, Padre Álvarez de Paz, Padre Vicente Carafa, Padre Kasper Drużbicki e tantos outros. Em 1883, os Jesuítas declararam que «a Companhia de Jesus aceita e recebe com espírito pleno de alegria e gratidão, o suavíssimo encargo, que lhe foi confiado por Nosso Senhor Jesus Cristo, de praticar, promover e propagar a devoção ao seu diviníssimo Coração» [145]. Em dezembro de 1871, o Padre Pieter Jan Beckx consagrou a Companhia ao Sagrado Coração de Jesus e o Padre Pedro Arrupe, como sinal de que ainda continuava a fazer parte da vida da Companhia, voltou a fazê-lo em 1972, com uma convicção que se expressa nestas palavras: «Quero dizer à Companhia algo que sinto não dever calar. Desde o meu noviciado, sempre estive convencido de que a chamada “Devoção ao Sagrado Coração” contém uma expressão simbólica da realidade mais profunda do espírito inaciano e uma eficácia extraordinária – ultra quam speraverint – tanto para o aperfeiçoamento pessoal como para a fecundidade apostólica. Ainda conservo a mesma convicção. […] Encontro nesta devoção uma das fontes mais íntimas da minha vida interior» [146].

147. Quando São João Paulo II convidou «todos os membros da Companhia a promover com ainda maior zelo esta devoção que corresponde mais do que nunca às expectativas do nosso tempo», fê-lo porque reconhecia os laços íntimos entre a devoção ao Coração de Cristo e a espiritualidade inaciana, pois «o desejo de “conhecer intimamente o Senhor” e de “ter um colóquio” com Ele, coração a coração, é caraterístico, graças aos Exercícios Espirituais, do dinamismo espiritual e apostólico inaciano, inteiramente ao serviço do amor ao Coração de Deus» [147].

Uma longa corrente de vida interior

148. A devoção ao Coração de Cristo reaparece no caminho espiritual de vários santos muito diferentes entre si e, em cada um deles, esta devoção assume novos aspectos. São Vicente de Paulo, para dar um exemplo, dizia que o que Deus quer é o coração: «Deus pede principalmente o coração, o coração, que é o principal. Por que razão quem não tem bens merece mais do que quem, tendo grandes posses, renuncia a elas? Porque quem não tem nada, vai a Ele com mais afeto; e é isso que Deus quer de modo especial» [148]. Isto implica aceitar que o próprio coração se una ao de Cristo: «Uma Irmã que faz todo o possível para predispor o seu coração a estar unido ao de Nosso Senhor […] quantas bênçãos não receberá de Deus!» [149].

149. Por vezes, somos tentados a considerar este mistério de amor como um admirável feito do passado, como uma bela espiritualidade de outros tempos, mas devemos recordar sempre de novo, como dizia um santo missionário, que «este Coração divino, que suportou ser trespassado por uma lança inimiga para poder derramar por aquela ferida sagrada os Sacramentos, onde se formou a Igreja, jamais deixou de amar» [150]. Santos mais recentes, como São Pio de Pietrelcina, Santa Teresa de Calcutá e tantos outros, falam com sincera devoção do Coração de Cristo. Mas gostaria de recordar também as experiências de Santa Faustina Kowalska, que repropõem a devoção ao Coração de Cristo colocando uma forte ênfase na vida gloriosa do Ressuscitado e na misericórdia divina. Com efeito, motivado pelas experiências desta santa e bebendo da herança espiritual do bispo São Józef Sebastian Pelczar (1842-1924) [151], São João Paulo II relacionou intimamente a sua reflexão sobre a misericórdia com a devoção ao Coração de Cristo: «A Igreja parece professar de modo particular a misericórdia de Deus e venerá-la, voltando-se para o Coração de Cristo. Com efeito, a aproximação de Cristo, no mistério do seu Coração, permite deter-nos neste ponto da revelação do amor misericordioso do Pai, que constituiu, em certo sentido, o núcleo central […] da missão messiânica do Filho do Homem» [152]. O próprio São João Paulo II, referindo-se ao Sagrado Coração, reconheceu de modo muito pessoal: «Ele falou-me desde a idade juvenil» [153].

150. A atualidade da devoção ao Coração de Cristo é particularmente evidente na ação evangelizadora e educativa de numerosas congregações religiosas femininas e masculinas, marcadas desde as suas origens por esta experiência espiritual cristológica. Mencioná-las todas seria uma tarefa interminável. Vejamos apenas dois exemplos escolhidos ao acaso: «O Fundador [São Daniel Comboni] encontrou no mistério do Coração de Jesus a força para o seu empenho missionário» [154]. «Impelidas pelo amor do Coração de Jesus, procuramos o crescimento das pessoas na sua dignidade humana e como filhos e filhas de Deus, com base no Evangelho e nas suas exigências de amor, perdão, justiça e solidariedade para com os pobres e marginalizados» [155]. Do mesmo modo, os Santuários consagrados ao Coração de Cristo, espalhados por todo o mundo, são uma atraente fonte de espiritualidade e fervor. A todos aqueles que, de algum modo, colaboram nestes lugares de fé e de caridade, dirijo a minha bênção paterna.

A devoção da consolação

151. A chaga do lado, de onde brota a água viva, permanece aberta no Ressuscitado. Esta grande ferida causada pela lança, e as chagas da coroa de espinhos que aparecem com frequência nas representações do Sagrado Coração, são inseparáveis desta devoção. Nela contemplamos o amor de Jesus Cristo que foi capaz de se entregar até ao fim. O coração do Ressuscitado conserva estes sinais da doação total que implicou um intenso sofrimento por nós. Portanto, de algum modo, é inevitável que o fiel queira responder não só a este grande amor, mas também à dor que Cristo aceitou suportar por causa de tanto amor.

Com Ele na Cruz

152. Vale a pena recuperar esta expressão da experiência espiritual desenvolvida em torno do Coração de Cristo: o desejo interior de o consolar. Não tratarei agora da prática da “reparação”, que considero melhor inserida no contexto da dimensão social desta devoção, e que desenvolverei no próximo capítulo. Agora gostaria apenas de me concentrar naquele desejo que muitas vezes brota no coração do fiel enamorado quando contempla o mistério da paixão de Cristo e o vive como um mistério que não só é recordado, mas que pela graça se torna presente, ou melhor, nos leva a estar misticamente presentes naquele momento redentor. Se o Amado é o mais importante, como não querer consolá-lo?

153. O Papa Pio XI procurou fundamentar esta afirmação convidando-nos a reconhecer que o mistério da redenção através da Paixão de Cristo, por graça de Deus, transcende todas as distâncias do tempo e do espaço. Deste modo, se Ele se entregou na Cruz também pelos pecados futuros, os nossos pecados, transcendendo o tempo, chegaram ao seu Coração ferido, assim como os atos que oferecemos hoje pela sua consolação: «Se, portanto, à vista de nossos pecados futuros, porém previstos, a alma de Jesus esteve triste até à morte, não há dúvida que desde então Lhe tenha dado algum conforto a previsão do nosso desagravo, quando “lhe apareceu o Anjo do Céu” ( Lc 22, 43), a consolar-Lhe o Coração opresso de tristeza e de angústia. E assim também agora, em modo admirável, porém verdadeiro, podemos e devemos consolar este Coração Sacratíssimo, continuamente ofendido pelos pecados dos homens ingratos» [156].

As razões do coração

154. Pode parecer que esta expressão de devoção não possua suficiente base teológica, mas o coração tem as suas razões. O sensus fidelium intui que há aqui algo de misterioso que ultrapassa a nossa lógica humana, e que a paixão de Cristo não é um mero evento do passado, pois dela podemos participar a partir da fé. A meditação da entrega de Cristo na cruz é, para a piedade dos fiéis, algo mais do que uma simples recordação. Esta convicção está solidamente fundamentada na teologia [157]. A isto junta-se a consciência do próprio pecado, que Ele carregou sobre os seus ombros feridos, e da própria inadequação perante tanto amor, que sempre nos ultrapassa infinitamente.

155. Em todo o caso, perguntamo-nos como é possível relacionarmo-nos com Cristo vivo, ressuscitado, plenamente feliz e, ao mesmo tempo, consolá-lo na Paixão. Consideremos que o Coração ressuscitado conserva a sua ferida como uma memória constante, e que a ação da graça provoca uma experiência que não está inteiramente contida no instante cronológico. Estas duas convicções permitem-nos admitir que nos encontramos perante um caminho místico que ultrapassa as tentativas da razão e exprime o que a própria Palavra de Deus nos sugere: «Mas – escreve o Papa Pio XI – como pode ser que Jesus Cristo reine bem-aventurado no Céu, se há mister o consolo de nossa reparação? “Dá uma alma que ame, e compreenderá nosso asserto”, respondemos com as palavras de Santo Agostinho ( in Ioannis Evangelium, tract. 26, 4), que fazem perfeitamente ao nosso propósito. Toda alma, com efeito, deveras abrasada em amor de Deus, se com a consideração abrange o tempo passado, vê em suas meditações e contempla a Jesus a padecer pelo homem, aflito, no meio das dores mais excruciantes “por nós, homens, e pela nossa salvação”, opresso da tristeza, das angústias e dos opróbrios, antes “esmagado pelos nossos delitos” ( Is 53, 5) e em ato de sanar-nos com suas chagas. Com tanta maior verdade as almas pias contemplam as dores do Salvador, enquanto os pecados e os delitos dos homens, perpretados no decurso de todos os tempos, motivaram a condenação de Jesus» [158].

156. Este ensinamento de Pio XI merece ser tido em conta. Com efeito, quando a Escritura afirma que os cristãos que não vivem de acordo com a sua fé «por si mesmos crucificam de novo o Filho de Deus» (Heb 6, 6), ou que, quando suporto sofrimentos pelos outros, «completo na minha carne o que falta às tribulações de Cristo» (Cl 1, 24), ou que Cristo, na sua paixão, rezou não só pelos seus discípulos de então, mas «por aqueles que hão de crer em mim, por meio da sua palavra» (Jo 17, 20), está a dizer algo que quebra os nossos esquemas limitados. Mostra-nos que não é possível estabelecer um antes e um depois sem qualquer ligação, mesmo que o nosso pensamento não o saiba explicar. O Evangelho, nos seus vários aspectos, não é apenas para ser refletido ou recordado, mas para ser vivido, tanto nas obras de amor como na experiência interior, e isto aplica-se sobretudo ao mistério da morte e ressurreição de Cristo. Não parece que as separações temporais utilizadas pela nossa mente contenham a verdade desta experiência de fé, onde se fundem a união com Cristo sofredor e, ao mesmo tempo, a força, a consolação e a amizade que temos com o Ressuscitado.

157. Vemos, assim, a unidade do Mistério Pascal nos seus dois aspectos inseparáveis que mutuamente se iluminam. Este Mistério único, fazendo-se presente pela graça nas suas duas dimensões, significa que, quando procuramos oferecer algo a Cristo para a sua consolação, os nossos próprios sofrimentos são iluminados e transfigurados pela luz pascal do amor. Acontece que participamos neste mistério na nossa vida concreta, porque anteriormente o próprio Cristo quis participar na nossa vida, quis viver antecipadamente como cabeça o que o seu corpo eclesial viveria, tanto nas feridas como nas consolações. Quando vivemos na graça de Deus, esta participação mútua torna-se uma experiência espiritual. Em última análise, é o Ressuscitado que, pela ação da sua graça, torna possível que estejamos misteriosamente unidos à sua paixão. Sabem-no os corações que creem, que experimentam a alegria da ressurreição, mas ao mesmo tempo desejam participar no destino do seu Senhor. Estão prontos para esta participação com os sofrimentos, os cansaços, as desilusões e os medos que fazem parte da sua vida. Não a vivem na solidão, pois estas feridas são igualmente uma participação no destino do corpo místico de Cristo que caminha no povo santo de Deus e que leva o destino de Cristo em todos os tempos e lugares da história. A devoção da consolação não é a-histórica ou abstrata, mas torna-se carne e sangue no caminho da Igreja.

A compunção

158. O desejo inevitável de consolar Cristo, que surge da dor de contemplar o que Ele sofreu por nós, alimenta-se também do reconhecimento sincero das nossas escravidões, dos nossos apegos, da nossa falta de alegria na fé, das nossas buscas vãs e, para além dos pecados concretos, da falta de correspondência do nosso coração ao seu amor e ao seu projeto. É uma experiência que nos purifica, porque o amor precisa da purificação das lágrimas que, no final, nos deixam mais sedentos de Deus e menos obcecados por nós próprios.

159. Assim, vemos que, quanto mais profundo se torna o desejo de consolar o Senhor, mais se aprofunda a compunção do coração fiel, que «não é um sentimento de culpa que te lança por terra, nem uma série de escrúpulos que paralisam, mas é uma picada benéfica que queima intimamente e cura, pois o coração, quando se dá conta do próprio mal e se reconhece pecador, abre-se, acolhe a ação do Espírito Santo, como água viva que o muda a ponto de lhe correrem as lágrimas pelo rosto [...]. Não significa sentir pena de nós, como muitas vezes somos tentados a fazer [...]. Diversamente, chorar por nós próprios é arrepender-nos seriamente de ter entristecido a Deus com o pecado; reconhecer que diante d’Ele sempre estamos em débito, nunca em crédito [...]. Assim como a água, gota a gota, escava a pedra, as lágrimas lentamente escavam os corações endurecidos. Deste modo assiste-se ao milagre da tristeza, da boa tristeza, que leva à doçura [...]. A compunção, mais do que fruto do nosso exercício, é uma graça e como tal deve ser pedida na oração»  [159]. É «pedir […] dor com Cristo doloroso, quebranto com Cristo quebrantado, lágrimas, pena interna de tanta pena que Cristo passou por mim» [160].

160. Peço, portanto, que ninguém ridicularize as expressões de fervor devoto do santo povo fiel de Deus, que na sua piedade popular procura consolar Cristo. E convido cada um a perguntar-se se não há mais racionalidade, mais verdade e mais sabedoria em certas manifestações desse amor que procura consolar o Senhor do que nos atos de amor frios, distantes, calculados e mínimos de que somos capazes aqueles que julgamos possuir uma fé mais reflexiva, cultivada e madura.

Consolados para consolar

161. Nesta contemplação do Coração de Cristo, entregue até ao fim, somos consolados. A dor que sentimos no coração dá lugar a uma confiança total e, por fim, resta a gratidão, a ternura, a paz, o seu amor reinante na nossa vida. A compunção «não provoca angústia, mas alivia a alma dos seus pesos, porque intervém na ferida deixada pelo pecado, preparando-nos para receber lá mesmo a carícia do Senhor» [161]. E a nossa dor une-se à dor de Cristo na cruz, pois quando dizemos que a graça nos permite superar todas as distâncias, isso significa também que Cristo, quando sofria, estava unido a todos os sofrimentos dos seus discípulos ao longo da história. Assim, se sofremos, podemos experimentar a consolação interior de saber que o próprio Cristo sofre conosco. Desejando consolá-lo, saímos consolados.

162. Mas, num certo momento desta contemplação do coração que crê, deve ressoar aquele dramático apelo do Senhor: «Consolai, consolai o meu povo» (Is 40, 1). E recordamos as palavras de São Paulo, que nos lembra que Deus nos consola «para que também nós possamos consolar aqueles que estão em qualquer tribulação, mediante a consolação que nós mesmos recebemos de Deus» (2 Cor 1, 4).

163. Isto convida-nos agora a procurar aprofundar a dimensão comunitária, social e missionária de toda a autêntica devoção ao Coração de Cristo. Com efeito, o Coração de Cristo, ao mesmo tempo que nos conduz ao Pai, envia-nos aos irmãos. Nos frutos de serviço, fraternidade e missão que o Coração de Cristo produz através de nós, cumpre-se a vontade do Pai. Assim se fecha o círculo: «Nisto se manifesta a glória do meu Pai: em que deis muito fruto» (Jo 15, 8).

CAPÍTULO V

AMOR POR AMOR

164. Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação, não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.

Um lamento e um pedido

165. A partir da segunda grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto – disse-me Ele – custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão» [162].

166. Jesus fala da sua sede de ser amado, mostrando-nos que o seu Coração não é indiferente à nossa reação diante do seu desejo: «Tenho sede, mas uma sede tão ardente de ser amado pelos homens no Santíssimo Sacramento, que esta sede me consome; e não encontro ninguém que se esforce, segundo o meu desejo, por saciar a minha sede, retribuindo um pouco do meu amor» [163]. O pedido de Jesus é o amor. Quando o coração fiel o descobre, a resposta que brota espontaneamente não é uma custosa busca de sacrifícios ou o mero cumprimento de um pesado dever, é uma questão de amor: «Recebi de Deus graças muito grandes do seu amor, e senti-me impelida do desejo de lhe corresponder de algum modo e de lhe pagar amor por amor» [164]. O mesmo ensina Leão XIII, escrevendo que, mediante a imagem do Sagrado Coração, a caridade de Cristo «nos move ao amor recíproco» [165].

Prolongar o seu amor nos irmãos

167. É preciso voltar à Palavra de Deus para reconhecer que a melhor resposta ao amor do seu Coração é o amor aos irmãos; não há maior gesto que possamos oferecer-lhe para retribuir amor por amor. A Palavra de Deus di-lo com toda a clareza:

«Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40).

«Toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14).

«Nós sabemos que passámos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14).

«Aquele que não ama o seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4, 20).

168. O amor aos irmãos não se fabrica, não é fruto do nosso esforço natural, mas exige uma transformação do nosso coração egoísta. Nasce então espontaneamente a célebre súplica: “Jesus, fazei o nosso coração semelhante ao Vosso”. Por isso mesmo, o convite de São Paulo não era: “Esforçai-vos por fazer boas obras”. O seu convite era mais precisamente: «Tende entre vós os mesmos sentimentos, que estão em Cristo Jesus» (Fl 2, 5).

169. É bom lembrar que no Império Romano muitos pobres, forasteiros e tantos outros descartados encontravam respeito, carinho e cuidado nos cristãos. Isto explica o raciocínio do imperador apóstata Juliano, que se perguntava porque é que os cristãos eram tão respeitados e seguidos, considerando que uma das razões era o seu empenho na assistência aos pobres e forasteiros, já que o Império os ignorava e desprezava. Para este imperador, era intolerável que os pobres não recebessem ajuda de sua parte, enquanto os odiados cristãos «alimentam os seus, e também os nossos» [166]. Numa carta, insiste, em particular, na ordem de criar instituições de caridade para competir com os cristãos e atrair o respeito da sociedade: «Estabelece em todas as cidades alojamentos numerosos para que os estrangeiros possam gozar da nossa humanidade. [...] Habitua os helenos às obras de beneficência» [167]. Mas não atingiu o seu objetivo, porque por detrás destas obras não havia seguramente o amor cristão, que permitia reconhecer a cada pessoa uma dignidade única.

170. Identificando-se com os últimos da sociedade (cf. Mt 25, 31-46), «Jesus trouxe a grande novidade do reconhecimento da dignidade de cada pessoa, como também e sobretudo daquelas qualificadas como “indignas”. Este princípio novo na história, pelo qual o ser humano é tanto mais “digno” de respeito e de amor quanto mais é fraco, mísero e sofredor, a ponto de perder a própria “figura” humana, mudou o rosto do mundo, dando vida a instituições que se dedicam a cuidar daqueles que se encontram em condições desumanas: os recém-nascidos abandonados, os órfãos, os idosos deixados sozinhos, os doentes mentais, os portadores de doenças incuráveis ou com graves malformações, os sem-teto» [168].

171. Mesmo do ponto de vista da ferida do seu Coração, olhar para o Senhor, que «tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores» ( Mt 8, 17), ajuda-nos a prestar mais atenção ao sofrimento e às necessidades dos outros, e torna-nos suficientemente fortes para participar na sua obra de libertação, como instrumentos de difusão do seu amor [169]. Se contemplarmos a entrega de Cristo por todos, torna-se inevitável perguntarmo-nos por que razão não somos capazes de dar a nossa vida pelos outros: «Foi com isto que ficámos a conhecer o amor: Ele, Jesus, deu a sua vida por nós; assim também nós devemos dar a vida pelos nossos irmãos» (1 Jo 3, 16).

Algumas ressonâncias na história da espiritualidade

172. Esta união entre a devoção ao Coração de Jesus e o compromisso com os irmãos atravessa a história da espiritualidade cristã. Vejamos alguns exemplos.

Ser uma fonte para os outros

173. A partir de Orígenes, vários Padres da Igreja interpretaram o texto de João 7, 38 – «hão de correr do seu coração rios de água viva» – como referindo-se ao próprio fiel, ainda que seja a consequência de ele próprio ter bebido de Cristo. Assim, a união com Cristo não tem apenas o objetivo de saciar a própria sede, mas de se tornar uma fonte de água fresca para os outros. Orígenes dizia que Cristo cumpre a sua promessa fazendo brotar em nós correntes de água: «A alma do ser humano, que é imagem de Deus, pode conter em si mesma e produzir de si mesma poços, fontes e rios» [170].

174. Santo Ambrósio recomendava beber de Cristo «para que abunde em ti a fonte de água que jorra para a vida eterna» [171]. E Mário Vitorino sustentava que o Espírito Santo é dado em tal abundância que «quem o recebe torna-se um ventre que emana rios de água viva» [172]. Santo Agostinho dizia que este rio que brota do fiel é a benevolência [173]. São Tomás de Aquino reafirmou esta ideia, afirmando que quando alguém «se apressa a comunicar aos outros os diversos dons da graça que recebeu de Deus, brota do seu ventre água viva» [174].

175. Com efeito, embora «o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano» [175], a Igreja, que nasce do Coração de Cristo, prolonga e comunica em todos os tempos e lugares os efeitos dessa única paixão redentora, que conduz os homens à união direta com o Senhor.

176. Na Igreja, a mediação de Maria, intercessora e mãe, só pode ser entendida «como participação nesta única fonte, que é a mediação do próprio Cristo» [176], único Redentor, e «esta função subordinada de Maria, não hesita a Igreja em proclamá-la» [177]. A devoção ao coração de Maria não quer enfraquecer a adoração única devida ao Coração de Cristo, mas estimulá-la: «A função maternal de Maria em relação aos homens de modo algum ofusca ou diminui esta única mediação de Cristo; manifesta antes a sua eficácia» [178]. Graças à imensa fonte que brota do lado aberto de Cristo, a Igreja, Maria e todos os fiéis, de diferentes maneiras, tornam-se canais de água viva. Deste modo, o próprio Cristo revela a sua glória na nossa pequenez.

Fraternidade e mística

177. São Bernardo, ao mesmo tempo que convidava à união com o Coração de Cristo, aproveitava a riqueza desta devoção para propor uma mudança de vida fundada no amor. Ele acreditava que era possível uma transformação da afetividade, escravizada pelos prazeres, que não se liberta pela obediência cega a uma ordem, mas numa resposta à doçura do amor de Cristo. Supera-se o mal com o bem, vence-se o mal com o crescimento do amor: «Ama, pois, o Senhor, teu Deus, com o afeto de um coração pleno e íntegro, ama-o com toda a vigilância e circunspeção da razão, ama-o também com todas as forças, de modo que nem sequer tenhas medo de morrer por seu amor […]. Que o Senhor Jesus seja doce e suave ao teu coração, contra os prazeres carnais malignamente doces, e que a doçura vença a doçura, como um prego expulsa outro prego» [179].

178. São Francisco de Sales foi especialmente iluminado pelo pedido de Jesus: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» ( Mt 11, 29). Assim, dizia ele, nas coisas mais simples e ordinárias roubamos o coração do Senhor: «É necessário ter o cuidado de o servir bem seja nas coisas grandes e elevadas que nas coisas pequenas e desprezíveis, pois podemos igualmente, por estas ou por aquelas, roubar-lhe o coração por amor [...]. Estes pequenos gestos quotidianos de caridade, esta dor de cabeça, esta dor de dentes, esta indisposição, esta contrariedade do marido ou da mulher, este copo quebrado, este desprezo ou este enfado, a perda das luvas, de um anel, de um lenço, este pequeno incómodo assumido para deitar-se à boa hora e se levantar cedo para rezar, para receber a comunhão, esta pequena vergonha que se experimenta ao fazer um ato de devoção em público; em suma, todos estes pequenos sofrimentos recebidos e abraçados com amor satisfazem grandemente à Bondade divina» [180]. Mas, em última análise, a chave da nossa resposta ao amor do Coração de Cristo é o amor ao próximo: «É um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades [...]. Nosso Senhor ama-nos sem interrupção, suporta as nossas faltas como as nossas imperfeições; […] devemos, portanto, fazer o mesmo em relação aos nossos irmãos, jamais deixando de apoiá-los» [181].

179. São Charles de Foucauld queria imitar Jesus Cristo, viver como Ele viveu, agir como Ele agiu, fazer sempre o que Jesus teria feito no seu lugar. Para realizar plenamente este objetivo, necessitava conformar-se aos sentimentos do Coração de Cristo. Assim, a expressão “amor por amor” aparece mais uma vez, quando ele diz: «Desejo de sofrimentos, para retribuir-lhe amor por amor, para imitá-lo [...] para entrar na sua obra e oferecer-me com ele, o nada que sou, em sacrifício, como vítima, para a santificação dos homens» [182]. O desejo de levar o amor de Jesus, o seu trabalho missionário entre os mais pobres e esquecidos da terra, levou-o a adotar como lema Iesus Caritas, com o símbolo do Coração de Cristo encimado por uma cruz [183]. Não foi uma decisão superficial: «Com todas as minhas forças, procuro mostrar e provar a estes pobres irmãos perdidos que a nossa religião é toda caridade, toda fraternidade, que o seu emblema é um coração» [184]. E quis estabelecer-se com outros irmãos «em Marrocos, em nome do coração de Jesus» [185]. Deste modo, a ação evangelizadora deles seria uma irradiação: «A caridade deve irradiar das fraternidades como irradia do coração de Jesus» [186]. Este desejo fez dele, pouco a pouco, um irmão universal, porque, deixando-se plasmar pelo Coração de Cristo, quis abraçar no seu coração fraterno toda a humanidade sofredora: «O nosso coração, como o da Igreja, como o de Jesus, deve abraçar todos os homens» [187]. «O amor do coração de Jesus pelos homens, o amor que ele manifestou na sua paixão, é o amor que nós devemos ter por todos os seres humanos» [188].

180. O padre Henri Huvelin, diretor espiritual de São Charles de Foucauld, dizia que «quando Nosso Senhor vive num coração, ele lhe dá esses sentimentos, e esse coração se abaixa para os pequenos. Tal foi a disposição do coração de um Vicente de Paulo […]. Quando Nosso Senhor vive na alma de um sacerdote, inclina-o para os pobres» [189]. É importante notar como esta dedicação de São Vicente, que o padre Huvelin descreve, era também alimentada pela devoção ao Coração de Cristo. São Vicente exortava a «tomar do coração de Nosso Senhor algumas palavras de consolação» [190] para o pobre doente. Para que isso seja real, pressupõe-se que o próprio coração tenha sido transformado pelo amor e pela mansidão do Coração de Cristo, e São Vicente repetiu muito essa convicção nos seus sermões e conselhos, tanto que se tornou uma caraterística proeminente das Constituições de sua Congregação: «Todos também porão grande diligência em aprender esta lição ensinada por Cristo: “Aprendei de Mim, que sou manso e humilde de coração”, considerando que – como Ele mesmo afirma – com a mansidão se possui a terra, porque com o exercício desta virtude se ganham os corações dos homens para se converterem a Deus, o que não conseguem aqueles que tratam com o próximo dura e asperamente» [191].

A reparação: construir sobre as ruínas

181. Tudo isto nos permite compreender, à luz da Palavra de Deus, que sentido devemos dar à “reparação” oferecida ao Coração de Cristo, e o que o Senhor realmente espera que reparemos com a ajuda da sua graça. Muito se discutiu a este respeito, mas São João Paulo II ofereceu uma resposta clara aos cristãos de hoje, a fim de nos guiar para um espírito de reparação mais em sintonia com o Evangelho.

Sentido social da reparação ao Coração de Cristo

182. São João Paulo II explicou que, entregando-nos em conjunto ao Coração de Cristo, «sobre as ruínas acumuladas pelo ódio e pela violência, poderá ser construída a civilização do amor tão desejada, o Reino do Coração de Cristo»; isto implica certamente que sejamos capazes de «unir o amor filial para com Deus ao amor do próximo»; pois bem, «é esta a verdadeira reparação pedida pelo Coração do Salvador» [192]. Junto a Cristo, sobre as ruínas que, com o nosso pecado, deixámos neste mundo, somos chamados a construir uma nova civilização do amor. Isto é reparar conforme o que o Coração de Cristo espera de nós. No meio do desastre deixado pelo mal, o Coração de Cristo quis precisar da nossa colaboração para reconstruir a bondade e a beleza.

183. É verdade que todo o pecado prejudica a Igreja e a sociedade, de modo que «a cada pecado pode atribuir-se indiscutivelmente o carácter de pecado social», embora isto seja especialmente verdade para alguns pecados que «constituem, pelo seu próprio objeto, uma agressão direta ao próximo» [193]. São João Paulo II explicou que a repetição destes pecados contra os outros acaba muitas vezes por consolidar uma “estrutura de pecado” que afeta o desenvolvimento dos povos [194]. Frequentemente isto está inserido numa mentalidade dominante que considera normal ou racional o que não passa de egoísmo e indiferença. Este fenómeno pode definir-se como alienação social: «Alienada é a sociedade que, nas suas formas de organização social, de produção e de consumo, torna mais difícil a realização deste dom e a constituição dessa solidariedade inter-humana» [195]. Não é apenas uma norma moral que nos leva a resistir a estas estruturas sociais alienadas, a desnudá-las e a criar um dinamismo social que restaure e construa o bem, mas é a própria «conversão do coração» que «impõe a obrigação» [196] de reparar tais estruturas. É a nossa resposta ao Coração amante de Jesus Cristo que nos ensina a amar.

184. Precisamente porque a reparação evangélica tem este forte significado social, os nossos atos de amor, de serviço e de reconciliação, para serem reparações eficazes, requerem que Cristo os impulsione, os motive e os torne possíveis. São João Paulo II dizia também que “para construir a civilização do amor”, a humanidade de hoje precisa do Coração de Cristo [197]. A reparação cristã não pode ser entendida apenas como um conjunto de obras exteriores, que são indispensáveis e por vezes admiráveis. Exige uma espiritualidade, uma alma, um sentido que lhe dê força, impulso e criatividade incansável. Precisa da vida, do fogo e da luz que vêm do Coração de Cristo.

Reparar os corações feridos

185. Por outro lado, uma reparação meramente exterior não é suficiente; nem para o mundo, nem para o Coração de Cristo. Se cada um pensar nos seus próprios pecados e nas consequências para os outros, descobrirá que reparar os danos causados a este mundo implica também o desejo de reparar os corações feridos, onde se produziu o dano mais profundo, a ferida mais dolorosa.

186. O espírito de reparação «convida-nos a esperar que cada ferida possa ser curada, por mais profunda que seja. A reparação completa parece por vezes impossível, quando se perdem definitivamente bens ou pessoas queridas, ou quando certas situações se tornam irreversíveis. Mas a intenção de reparar e de o fazer concretamente é essencial para o processo de reconciliação e para o regresso da paz ao coração» [198].

A beleza de pedir perdão

187. Não bastam as boas intenções; é indispensável um dinamismo interior de desejo, que terá consequências externas. Em suma, «a reparação, para ser cristã, para tocar o coração da pessoa ofendida e não ser um simples ato de justiça comutativa, pressupõe duas atitudes exigentes: reconhecer a culpa e pedir perdão [...] É deste reconhecimento honesto do mal causado ao irmão, e do sentimento profundo e sincero de que o amor foi ferido, que nasce o desejo de reparar» [199].

188. Não se deve pensar que reconhecer o próprio pecado perante os outros seja algo degradante ou prejudicial para a nossa dignidade humana. Pelo contrário, é deixar de mentir a si mesmo, é reconhecer a própria história tal como ela é, marcada pelo pecado, sobretudo quando fizemos mal aos nossos irmãos: «Acusar-se a si mesmo faz parte da sabedoria cristã. […] Isto agrada ao Senhor, porque o Senhor recebe o coração contrito» [200].

189. Faz parte deste espírito de reparação o bom hábito de pedir perdão aos irmãos, que revela uma enorme nobreza no meio da nossa fragilidade. Pedir perdão é uma forma de curar as relações pois «reabre o diálogo e manifesta o desejo de restabelecer o vínculo da caridade fraterna […], toca o coração do irmão, consola-o e inspira-o a aceitar o perdão pedido. Assim, se o irreparável não pode ser completamente reparado, o amor pode sempre renascer, tornando a ferida suportável» [201].

190. Um coração capaz de compaixão pode crescer em fraternidade e solidariedade, porque «quem não chora retrocede, envelhece interiormente, ao passo que a pessoa que chega a uma oração mais simples e íntima, feita de adoração e comoção diante de Deus, amadurece. Prende-se cada vez menos a si mesma e mais a Cristo, e torna-se pobre em espírito. Deste modo sente-se mais próxima dos pobres, os prediletos de Deus» [202]. Por conseguinte, surge um autêntico espírito de reparação, pois «quem está compungido no coração, sente-se cada vez mais irmão de todos os pecadores do mundo, sente-se mais irmão, sem qualquer aparência de superioridade nem dureza de juízo, mas sempre com desejo de amar e reparar» [203]. Esta solidariedade gerada pela compunção torna, ao mesmo tempo, possível a reconciliação. A pessoa capaz de compunção, «em vez de se irritar e escandalizar pelo mal feito pelos irmãos, chora pelos pecados deles. Não se escandaliza. Cumpre-se uma espécie de reviravolta: a tendência natural de ser indulgente consigo mesmo e inflexível com os outros inverte-se e, pela graça de Deus, a pessoa torna-se exigente consigo mesma e misericordiosa com os outros» [204].

A reparação: um prolongamento do Coração de Cristo

191. Há um outro modo complementar de entender a reparação, que nos permite colocá-la numa relação ainda mais direta com o Coração de Cristo, sem excluir desta reparação o compromisso concreto com os irmãos, do qual falámos.

192. Num outro contexto, afirmei que Deus «de certa maneira, quis limitar-Se a Si mesmo» e que «muitas coisas que consideramos males, perigos ou fontes de sofrimento, na realidade fazem parte das dores de parto que nos estimulam a colaborar com o Criador» [205]. A nossa cooperação pode permitir que o poder e o amor de Deus se difundam nas nossas vidas e no mundo, e a rejeição ou a indiferença podem impedi-lo. Algumas expressões bíblicas exprimem-no metaforicamente, como quando o Senhor grita: «Se te queres converter, Israel, volta para mim» ( Jr 4, 1). Ou quando diz, perante a rejeição do seu povo: «O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas» ( Os 11, 8).

193. Embora não seja possível falar de um novo sofrimento de Cristo glorioso, «o mistério pascal de Cristo […] e tudo o que Cristo é, tudo o que fez e sofreu por todos os homens, participa da eternidade divina, e assim transcende todos os tempos e em todos se torna presente» [206]. Deste modo, podemos dizer que Ele mesmo aceitou limitar a glória expansiva da sua ressurreição, conter a difusão do seu imenso e ardente amor para dar lugar à nossa livre cooperação com o seu Coração. Isto é tão real que a nossa recusa o detém nesse impulso de doação, tal como a nossa confiança e a oferta de nós próprios abre um espaço, oferece um canal desimpedido para a efusão do seu amor.A nossa rejeição ou indiferença limitam os efeitos do seu poder e a fecundidade do seu amor em nós. Se Ele não encontra em mim confiança e abertura, o seu amor fica privado – porque Ele mesmo assim o quis – do seu prolongamento na minha vida, que é única e irrepetível, e no mundo onde me chama a torná-lo presente. Isso não vem da sua fragilidade, mas da sua liberdade infinita, do seu poder paradoxal e da perfeição do seu amor por cada um de nós. Quando a omnipotência de Deus se manifesta na fraqueza da nossa liberdade, «só a fé a pode descobrir» [207].

194. Com efeito, Santa Margarida conta que, numa das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu Coração apaixonado de amor por nós, que «não podendo já conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las» [208]. Uma vez que o Senhor todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega.

A oferta ao Amor

195. Para refletir melhor sobre este mistério, socorremo-nos novamente da luminosa espiritualidade de Santa Teresa do Menino Jesus. Ela sabia que algumas pessoas tinham desenvolvido uma forma extrema de reparação, com a boa vontade de se dar pelos outros, que consistia em oferecer-se como uma espécie de “para-raios” a fim de que a justiça divina se realizasse: «Pensei nas almas que se oferecem como vítimas à Justiça de Deus, a fim de desviarem e de atraírem sobre elas os castigos reservados aos culpados» [209]. Mas, por muito admirável que tal oferta possa parecer, ela não está muito convencida disso:«Estava longe de me sentir impelida a fazê-lo» [210]. Esta insistência na justiça divina acaba por levar a pensar que o sacrifício de Cristo fosse incompleto ou parcialmente eficaz, ou que a sua misericórdia não fosse suficientemente intensa.

196. Com a sua intuição espiritual, Santa Teresa do Menino Jesus descobriu que existe uma outra maneira de se oferecer, em que não é necessário saciar a justiça divina, mas deixar o amor infinito do Senhor difundir-se sem entraves: «Ó meu Deus! O vosso Amor desprezado vai ficar no vosso Coração? Estou convencida de que se encontrásseis almas que se oferecessem como vítimas de holocausto ao vosso Amor, as consumiríeis rapidamente. Creio que ficaríeis contente por não reprimirdes as ondas de infinita ternura que há em Vós» [211].

197. Não há nada a acrescentar ao único sacrifício redentor de Cristo, mas é verdade que a recusa da nossa liberdade não permite que o Coração de Cristo espalhe as suas “ondas de infinita ternura” neste mundo. E isto porque o próprio Senhor quer respeitar esta possibilidade. Foi isto, mais do que a justiça divina, que inquietou o coração de Santa Teresa do Menino Jesus, pois para ela a justiça só pode ser compreendida à luz do amor. Vimos que ela adorava todas as perfeições divinas através da misericórdia, e assim as via transfiguradas, radiantes de amor, dizendo: «A própria Justiça (e talvez mais ainda que qualquer outra) me parece revestida de amor» [212].

198. Deste modo, nasce o seu ato de oferecimento, não à justiça divina, mas ao Amor misericordioso: «Ofereço-me como vítima de holocausto ao vosso amor misericordioso, suplicando-vos que me consumais sem cessar, deixando transbordar para a minha alma as ondas de ternura infinita que estão encerradas em Vós, e que assim eu me torne mártir do vosso Amor, ó meu Deus!» [213]. É importante notar que não se trata apenas de deixar que o Coração de Cristo difunda a beleza do seu amor no nosso coração, através de uma confiança total, mas também que, através da própria vida, chegue aos outros e transforme o mundo: «No coração da Igreja, minha Mãe, eu serei o Amor [...], assim o meu sonho será realizado» [214]. Os dois aspectos estão inseparavelmente ligados.

199. O Senhor aceitou a sua oferta. Com efeito, algum tempo depois, ela própria exprimiu um amor intenso pelos outros, afirmando que este provinha do Coração de Cristo que se prolongava através dela. Assim, escrevia a sua irmã Leónia: «Amo-te mil vezes mais ternamente do que habitualmente se amam as irmãs, visto que posso amar-te com o Coração do nosso Celeste Esposo» [215]. E mais tarde, escreveu a Maurice Bellière: «Como eu queria fazer-vos compreender a ternura do Coração de Jesus, o que Ele espera de vós!» [216].

Integridade e harmonia

200. Irmãs e irmãos, proponho que desenvolvamos esta forma de reparação, que é, em última análise, oferecer ao Coração de Cristo uma nova possibilidade de difundir neste mundo as chamas da sua ternura ardente. Se é verdade que a reparação implica o desejo de «desagravar o Amor incriado da injustiça que lhe infligem tantas negligências, e esquecimentos e injúrias» [217], o modo mais adequado é que o nosso amor, em troca daqueles momentos em que foi rejeitado ou negado, dê ao Senhor a possibilidade de se dilatar. Isto acontece se o nosso amor ultrapassa a mera “consolação” a Cristo, de que falámos no capítulo anterior, e se transforma em atos de amor fraterno com os quais curamos as feridas da Igreja e do mundo. Deste modo, oferecemos novas expressões da força restauradora do Coração de Cristo.

201. As renúncias e os sofrimentos exigidos por estes atos de amor ao próximo unem-nos à paixão de Cristo, e sofrendo com Cristo «nesta mística crucifixão de que fala o Apóstolo, com ainda maior abundância receberemos, para nós e para os outros, frutos de propiciação e de indulgência» [218]. Só Cristo salva pela sua entrega na cruz por nós, só Ele redime, «pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens, um homem: Cristo Jesus, que se entregou a si mesmo como resgate por todos» ( 1 Tm 2, 5-6). A reparação que oferecemos é uma participação, que aceitamos livremente, no seu amor redentor e no seu único sacrifício. Assim, completamos na nossa carne «o que falta às tribulações de Cristo, pelo seu Corpo, que é a Igreja» ( Cl 1, 24) e é o próprio Cristo que prolonga através de nós os efeitos da sua doação total no amor.

202. Os sofrimentos têm muitas vezes a ver com o nosso ego ferido, mas é precisamente a humildade do Coração de Cristo que nos indica o caminho do abaixamento. Deus quis vir até nós humilhando-Se, fazendo-Se pequeno. Já o Antigo Testamento nos ensina isso, através das várias metáforas que mostram um Deus que entra na pequenez da história e se deixa rejeitar pelo seu povo. O seu amor mistura-se com a vida quotidiana do povo amado e torna-se mendigo de uma resposta, como se pedisse licença para mostrar a sua glória. Por outro lado, «talvez uma só vez, com palavras suas, tenha o Senhor Jesus apelado para o seu coração. E salientou este único traço: “mansidão e humildade”. Como se dissesse que só por este caminho quer conquistar o homem» [219]. Quando Cristo disse: «Aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração» ( Mt 11, 29), indicou que «para se exprimir necessita da nossa pequenez, do nosso abaixamento» [220].

203. No que dissemos, é importante notar vários aspectos inseparáveis, porque estas ações de amor ao próximo, com todas as renúncias, abnegações, sofrimentos e fadigas que implicam, cumprem esta função quando são alimentadas pela caridade do próprio Cristo. Ele permite-nos amar como Ele amou e, assim, Ele próprio ama e serve através de nós. Se, por um lado, parece apequenar-se, aniquilar-se, porque quis manifestar o seu amor mediante os nossos gestos, por outro lado, nas mais simples obras de misericórdia, o seu Coração é glorificado e manifesta toda a sua grandeza. Um coração humano que dá espaço ao amor de Cristo através duma confiança total e o deixa expandir-se na sua própria vida com o seu fogo, torna-se capaz de amar os outros como Cristo, tornando-se pequeno e próximo de todos. Assim Cristo sacia a sua sede e espalha gloriosamente, em nós e através de nós, as chamas da sua ternura ardente. Reparemos na bela harmonia que existe em tudo isto.

204. Finalmente, para compreender esta devoção em toda a sua riqueza, retomando o que dissemos sobre a sua dimensão trinitária, é necessário acrescentar que a reparação de Cristo enquanto ser humano é oferecida ao Pai por obra do Espírito Santo em nós. Portanto, a nossa reparação ao Coração de Cristo dirige-se, em última análise, ao Pai, que se compraz em ver-nos unidos a Cristo quando nos oferecemos por Ele, com Ele e n’Ele.

Fazer o mundo enamorar-se

205. A proposta cristã é atrativa quando pode ser vivida e manifestada na sua integralidade: não como um simples refúgio em sentimentos religiosos ou em cultos faustosos. Que culto seria o de Cristo se nos contentássemos com uma relação individual desinteressada em ajudar os outros a sofrer menos e a viver melhor? Poderá agradar ao Coração que tanto amou se nos mantivermos numa experiência religiosa íntima, sem consequências fraternas e sociais? Sejamos honestos e leiamos a Palavra de Deus na sua inteireza. Por isso mesmo dizemos que não se trata sequer de uma promoção social desprovida de significado religioso, que no fundo seria querer para o ser humano menos do que aquilo que Deus lhe quer dar. É por isso que temos de concluir este capítulo recordando a dimensão missionária do nosso amor ao Coração de Cristo.

São João Paulo II, para além de falar da dimensão social da devoção ao Coração de Cristo, referiu-se à «reparação, que é cooperação apostólica para a salvação do mundo»  [221]. Do mesmo modo, a consagração ao Coração de Cristo «deve ser aproximada à ação missionária da própria Igreja, porque responde ao desejo do Coração de Jesus de propagar no mundo, através dos membros do seu Corpo, a sua dedicação total ao Reino»  [222]. Por conseguinte, através dos cristãos, «o amor difundir-se-á no coração dos homens, para que se construa o Corpo de Cristo que é a Igreja e se edifique uma sociedade de justiça, de paz e de fraternidade»  [223].

207. O prolongamento das chamas de amor do Coração de Cristo ocorre também na obra missionária da Igreja, que leva o anúncio do amor de Deus manifestado em Cristo. São Vicente de Paulo ensinou-o muito bem quando convidou os seus discípulos a pedir ao Senhor «esse coração, esse coração que nos faz ir a toda a parte, esse coração do Filho de Deus, o coração de Nosso Senhor, que nos dispõe a ir como Ele iria […] e nos envia como enviou-lhes [os apóstolos], para levar o seu fogo a toda a parte» [224].

208. São Paulo VI, dirigindo-se às congregações que propagavam a devoção ao Sagrado Coração, recordava que «o empenho pastoral e o ardor missionário serão intensamente inflamados quando os sacerdotes e os fiéis, para difundir a glória de Deus, e seguindo o exemplo da caridade eterna que Cristo nos mostrou, orientarem os seus esforços para comunicar a todos os homens as riquezas insondáveis de Cristo» [225]. À luz do Sagrado Coração, a missão torna-se uma questão de amor, e o maior risco desta missão é que se digam e façam muitas coisas, mas não se consiga promover o encontro feliz com o amor de Cristo que abraça e salva.

209. A missão, entendida a partir da irradiação do amor do Coração de Cristo, requer missionários apaixonados, que se deixem cativar por Cristo e que inevitavelmente transmitam esse amor que mudou as suas vidas. Por isso, custa-lhes perder tempo a discutir questões secundárias ou a impor verdades e regras, porque a sua principal preocupação é comunicar o que vivem e, sobretudo, que os outros percebam a bondade e a beleza do Amado através dos seus pobres esforços. Não é isto que acontece com qualquer enamorado? Vale a pena tomar como exemplo as palavras com que Dante Alighieri, enamorado, tentou exprimir esta lógica:

«Pensando em todo o seu valor
tão doce se me faz sentir o Amor,
que se agora eu não perder veemência,
falando tornarei enamorada a gente» [226].

210. Falar de Cristo, pelo testemunho ou pela palavra, de tal modo que os outros não tenham de fazer um grande esforço para o amar, é o maior desejo de um missionário da alma. Não há proselitismo nesta dinâmica de amor, as palavras do enamorado não perturbam, não impõem, não forçam, apenas levam os outros a se perguntarem como é possível um tal amor. Com o maior respeito pela liberdade e pela dignidade do outro, o enamorado limita-se a esperar que lhe seja permitido narrar esta amizade que preenche a sua vida.

211. Sem descurar a prudência e o respeito, Cristo pede-te que não tenhas vergonha de reconhecer a tua amizade com Ele. Pede-te que tenhas a coragem de dizer aos outros que foi bom para ti tê-lo encontrado: «Todo aquele que se declarar por mim, diante dos homens, também me declararei por ele diante do meu Pai que está no Céu» (Mt 10, 32). Mas para o coração enamorado não é uma obrigação, é uma necessidade difícil de conter: «Ai de mim, se eu não evangelizar!» (1 Cor 9, 16). «No meu coração, a sua palavra era um fogo devorador, encerrado nos meus ossos. Esforçava-me por contê-lo, mas não podia» (Jr 20, 9).

Em comunhão de serviço

212. Não se deve pensar nesta missão de comunicar Cristo como se fosse algo apenas entre mim e Ele. Ela é vivida em comunhão com a própria comunidade e com a Igreja. Se nos afastarmos da comunidade, afastamo-nos também de Jesus. Se a esquecermos e não nos preocuparmos com ela, a nossa amizade com Jesus arrefecerá. Nunca se deve esquecer este segredo: o amor pelos irmãos e irmãs da própria comunidade – religiosa, paroquial, diocesana, etc. – é como o combustível que alimenta a nossa amizade com Jesus. Os atos de amor para com os irmãos e irmãs da comunidade podem ser a melhor ou, por vezes, a única forma possível de exprimir aos outros o amor de Jesus Cristo. O próprio Senhor o disse: «Por isto é que todos conhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros» (Jo 13, 35).

213. É um amor que se torna serviço comunitário. Não me canso de recordar que Jesus o disse com grande clareza: «Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizestes» (Mt 25, 40). Ele propõe-te que o encontres também aí, em cada irmão e em cada irmã, especialmente nos mais pobres, desprezados e abandonados da sociedade. Que lindo encontro!

214. Portanto, se nos dedicarmos a ajudar alguém, isso não significa que nos esquecemos de Jesus. Pelo contrário, encontramo-lo de outra forma. E, quando tentamos levantar e curar alguém, Jesus está lá, ao nosso lado. Com efeito, é bom recordar que, quando enviou os seus discípulos em missão, «o Senhor cooperava com eles» (Mc 16, 20). Ele está lá trabalhando, lutando e fazendo o bem conosco. De uma forma misteriosa, é o seu amor que se manifesta através do nosso serviço, é Ele próprio que fala ao mundo naquela linguagem que por vezes não tem palavras.

215. Ele te envia a fazer o bem e te impele a partir do teu interior. Para isso, chama-te com uma vocação de serviço: farás o bem como médico, como mãe, como professor, como sacerdote. Onde quer que estejas, poderás sentir que ele te chama e te envia para viveres esta missão na terra. Ele próprio nos diz: «Envio-vos» (Lc 10, 3). Isto faz parte da amizade com Ele. Portanto, para que essa amizade amadureça, é preciso que te deixes enviar por Ele para cumprir uma missão neste mundo, com confiança, com generosidade, com liberdade, sem medo. Se te fechares no teu conforto, isso não te dará segurança; os medos, as tristezas e as angústias aparecerão sempre. Quem não cumpre a sua missão nesta terra não pode ser feliz, fica frustrado. Por isso, deixa-te enviar, deixa-te conduzir por Ele para onde Ele quiser. Não te esqueças que Ele vai contigo. Não te atira para o abismo nem te deixa entregue a ti mesmo. Ele conduz-te e acompanha-te. Ele prometeu e cumpre: «Eu estarei sempre convosco» (Mt 28, 20).

216. De algum modo tens de ser missionário, como o foram os apóstolos de Jesus e os primeiros discípulos, que foram anunciar o amor de Deus, que saíram para dizer que Cristo está vivo e merece ser conhecido. Santa Teresa do Menino Jesus viveu-o como parte inseparável da sua oferta ao Amor misericordioso: «Queria dar de beber ao meu Bem-Amado e sentia-me eu mesma devorada pela sede de almas» [227]. Esta é também a tua missão. Cada um cumpre-a à sua maneira, e verás como podes ser missionário. Jesus merece-o. Se tiveres coragem, Ele te iluminará, acompanhará e fortalecerá, e viverás uma experiência preciosa que te fará muito bem. Não importa se conseguirás ver algum resultado; deixa isso para o Senhor que trabalha no segredo dos corações, mas não deixes de viver a alegria de tentar comunicar o amor de Cristo aos outros.

CONCLUSÃO

217. O que está expresso neste documento permite-nos descobrir que o que está escrito nas encíclicas sociais Laudato si’ e Fratelli tutti não é alheio ao nosso encontro com o amor de Jesus Cristo, pois bebendo desse amor tornamo-nos capazes de tecer laços fraternos, de reconhecer a dignidade de cada ser humano e de cuidar juntos da nossa casa comum.

218. Hoje tudo se compra e se paga, e parece que o próprio sentido da dignidade depende das coisas que se podem obter com o poder do dinheiro. Somos instigados a acumular, a consumir e a distrairmo-nos, aprisionados por um sistema degradante que não nos permite olhar para além das nossas necessidades imediatas e mesquinhas. O amor de Cristo está fora desta engrenagem perversa e só Ele pode libertar-nos desta febre onde já não há lugar para o amor gratuito. Ele é capaz de dar coração a esta terra e reinventar o amor lá onde pensamos que a capacidade de amar esteja morta para sempre.

219. A Igreja também precisa dele, para não substituir o amor de Cristo por estruturas ultrapassadas, obsessões de outros tempos, adoração da própria mentalidade, fanatismos de todo o género que acabam por ocupar o lugar daquele amor gratuito de Deus que liberta, vivifica, alegra o coração e alimenta as comunidades. Da ferida do lado de Cristo continua a correr aquele rio que nunca se esgota, que não passa, que se oferece sempre de novo a quem quer amar. Só o seu amor tornará possível uma nova humanidade.

220. Peço ao Senhor Jesus Cristo que, para todos nós, do seu Coração santo brotem rios de água viva para curar as feridas que nos infligimos, para reforçar a nossa capacidade de amar e servir, para nos impulsionar a fim de aprendermos a caminhar juntos em direção a um mundo justo, solidário e fraterno. Isto até que, com alegria, celebremos unidos o banquete do Reino celeste. Aí estará Cristo ressuscitado, harmonizando todas as nossas diferenças com a luz que brota incessantemente do seu Coração aberto. Bendito seja!

Dado em Roma, junto de São Pedro,

a 24 de outubro do ano 2024,

décimo segundo do meu Pontificado.

 

 

[1] Uma boa parte das reflexões deste primeiro capítulo estão inspiradas nos escritos inéditos do Pe. Diego Fares, S.I. Que o Senhor o tenha na Sua Santa Glória!

[2] Cf. Homero, Ilíada, canto XXI, verso 441.

[3] Cf. Ibid., canto X, verso 244.

[4] Cf. Timeu, § 65c-d; § 70.

[5]  Homilia na Missa matutina de Santa Marta (14 de outubro de 2016): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 20 de outubro de 2016), 7.

[6] S. João Paulo II, Alocução do Angelus (2 de julho de 2000): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 8 de julho de 2000), 1.

[7] Idem, Catequese (8 de junho de 1994): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 11 de junho de 1994), 8.

[8]  Os Demónios (1872).

[9] Romano Guardini,  O mundo religioso de Dostoievski (Lisboa 1973), 232.

[10] Karl Rahner, “Einige Thesen zur Theologie der Herz-Jesu-Verehrung”. in: Schriften zur Theologie III (Einsiedeln 1956), 392.

[11]  Ibid., 393.

[12] Han Byung-Chul,  O Coração de Heidegger. Sobre o conceito de tonalidade afetiva em Martin Heidegger (Petrópolis 2023), 93-94.

[13]  Ibid., 151.

[14] cf. Idem, Agonia do Eros, (Petrópolis 2017).

[15] cf. Martin Heidegger, Explicações da Poesia de Hölderlin (Brasília 2013), 136.

[16] Cf. Michel de Certeau, L’espace du désir ou le «fondement» des Exercices spirituels. in: Christus 77 (1973), 118-128.

[17]  Itinerarium mentis in Deum, VII, 6.

[18]  Proemium in I Sent., q. 3.

[19] S. John Henry Newman, Meditações e Devoções (São Paulo, 2016), 283.

[20] Const. past. Gaudium et spes, 82.

[21]  Ibid., 10.

[22]  Ibid., 14.

[23] Cf. Dicastério para a Doutrina da Fé, Declaração Dignitas Infinita (2 de abril de 2024), 8.

[24] Const. past. Gaudium et spes, 26.

[25] S. João Paulo II, Alocução do Angelus (28 de junho de 1998): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 4 de julho de 1998), 1.

[26] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 83: AAS 107 (2015), 880.

[27] Francisco, Homilia na Missa matutina de Santa Marta (7 de junho de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 9 de junho de 2013), 6.

[28] Pio XII, Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 12: AAS 48 (1956), 316.

[29] Pio VI, Constituição Auctorem fidei (28 de agosto de 1794), 63. DH 2663.

[30] Leão XIII, Carta enc. Annum Sacrum (25 de maio de 1899): ASS 31 (1898-1899), 649.

[31]  Ibidem: «Inest in Sacro Corde symbolum atque expressa imago infinitae Iesu Christi caritatis».

[32] Francisco, Alocução do Angelus, (9 de junho de 2013): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 16 de junho de 2013), 5.

[33] Sendo assim, entende-se porque a Igreja proibiu que se coloquem sobre os altares representações isoladas dos corações de Jesus ou de Maria (cf. Resposta da Sagrada Congregação dos Ritos Sacros ao Pe. Charles Lecoq, P.S.S., de 5 de abril de 1879. in: Decreta Authentica Congregationis Sacrorum Rituum. Ex actis eiusdem collecta, vol. III, Roma 1900, 107-108, n. 3492). Fora da Liturgia, «para a devoção privada» ( ibidem) pode utilizar-se isoladamente o símbolo de um coração como expressão didática, figura estética ou emblema que convida a pensar no amor de Cristo, mas corre-se o risco de entender o coração como objeto de adoração ou de diálogo espiritual separadamente da Pessoa de Cristo. Em 31 de março de 1887, a Congregação deu uma resposta semelhante ( ibid., 187, n. 3673).

[34] Conc. Ecum. de Trento, Sess. XXV, Decr. Mandat sancta synodus (3 de dezembro de 1563). DH 1823.

[35] V Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe, Documento de Aparecida (29 de junho de 2007), 259.

[36] Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 21-22: AAS 48 (1956), 323-324.

[37]  Epístola 261, 3: PG 32, 972.

[38]  In Ioh. homil. 63, 2: PG 59, 350.

[39]  De fide ad Gratianum, II, cap. 7, 56: PL 16, 594 (edição de 1880).

[40]  Enarrationes in Psalmos 87, 3: PL 37, 1111.

[41] Cf. De fide orthodoxa, III, 6.20: PG 94, 1006.1081.

[42] Olegário González de Cardedal,  La entraña del cristianismo (Salamanca, 2010), 70-71.

[43]  Alocução do Angelus (1º de junho de 2008): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 7 de junho de 2008), 7.

[44] Pio XII, Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 27: AAS 48 (1956), 327-328.

[45]  Ibid., 58: AAS 48 (1956), 343-344.

[46] Bento XVI, Alocução do Angelus (1º de junho de 2008): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 7 de junho de 2008), 7.

[47] Vigílio, Constituição Inter innumeras sollicitudines (14 de maio de 553): DH 420.

[48] Conc. Ecum. de Éfeso, Anatematismos de Cirilo de Alexandria, 8: DH 259.

[49] Conc. Ecum. II de Constantinopla, Sess. VIII (2 de junho de 533), Cân. 9: DH 431.

[50]  Cântico espiritual (B – segunda redação), Canção 31, 8: S. João da Cruz, Obras completas (Avessadas, 2005), 688.

[51]  Ibid., Canção 13, 9: o. c., 600 .

[52]  Ibid., Canção 13, 1: o. c., 596.

[53] «Para nós, contudo, um só é Deus, o Pai, de quem tudo procede e para quem nós somos» ( 1 Cor 8, 6). «A Deus nosso Pai, a glória pelos séculos dos séculos! Ámen!» ( Fl 4, 20). «Bendito seja Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai das misericórdias e o Deus de toda a consolação!» ( 2 Cor 1, 3).

[54] Carta Ap. Tertio millennio adveniente (10 de novembro de 1994), 49: AAS 87 (1995), 35.

[55]  Ad Rom., 7: PG 5, 694.

[56] «O mundo tem de saber que Eu amo o Pai» ( Jo 14, 31). «Eu e o Pai somos Um» ( Jo 10, 30). «Eu estou no Pai e o Pai está em mim» ( Jo 14, 10).

[57] «Vou para o Pai» ( pròs tòn Patéra: Jo 16, 28). «Eu vou para ti» ( pròs sè: Jo 17, 11).

[58] « Eis tòn kólpon tou Patròs».

[59]  Adv. Haer., III, 18, 1: PG 7, 932.

[60]  In Ioh., II, 2: PG 14, 110.

[61]  Alocução do Angelus (23 de junho de 2002): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 29 de junho de 2002), 1.

[62] S. João Paulo II, Mensagem por ocasião do centenário da consagração do gênero humano ao divino Coração de Jesus(Varsóvia, 11 de junho de 1999): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 19 de junho de 1999), 3.

[63] Idem, Alocução do Angelus (8 de junho de 1986): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 15 de junho de 1986), 1.

[64] Francisco, Homilia. Visita à policlínica “Gemelli” (27 de junho de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 3 de julho de 2014), 9.

[65] Cf. Ef 1, 5.7; 2, 18; 3, 12.

[66] Cf. Ef 2, 5-6; 4, 15.

[67] Cf. Ef 1, 3-4.6-7.11.13.15; 2, 10.13.21-22; 3, 6.11.21.

[68]  Mensagem por ocasião do centenário da consagração do gênero humano ao divino Coração de Jesus (Varsóvia, 11 de junho de 1999): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 19 de junho de 1999), 2.

[69] «Pois que o Sagrado Coração é o símbolo e a imagem sensível da caridade infinita de Jesus Cristo, caridade que nos anima a amarmo-nos uns aos outros, é natural que nos consagremos a este Coração Santíssimo. Proceder assim é darmo-nos e ligarmo-nos a Jesus Cristo […]. Hoje, eis que um outro emblema bendito e divino se oferece aos nossos olhos. É o Coração Sacratíssimo de Jesus, sobre o qual se ergue a cruz e que brilha com magnífico esplendor no meio das chamas. Nele devemos colocar todas as nossas esperanças; devemos pedir-lhe e esperar dele a salvação dos homens». Carta enc. Annum Sacrum (25 de maio de 1899): ASS 31 (1898-99), 649, 651.

[70] «Neste símbolo, dentre todos o mais auspicioso, e no culto que ao Coração de Jesus tributamos, acaso não deparamos a síntese de toda a religião e regra de vida mais perfeita? Com efeito, esta devoção leva em pouco tempo as almas a estudar mais intimamente Cristo Jesus; excita-as com mais eficácia a um amor mais entusiasta, a mais fiel imitação». Carta enc. Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928), 3: AAS 20 (1928), 167.

[71] «É um ato de religião excelentíssimo, visto exigir de nós uma plena e inteira vontade de entrega e consagração ao amor do divino Redentor, do qual é sinal e símbolo vivo o seu coração traspassado […]. Nele podemos considerar não só um símbolo, mas também como que um compêndio de todo o mistério da nossa redenção […]. Jesus Cristo expressamente e repetidas vezes indicou o seu coração como símbolo com que estimular os homens ao conhecimento e à estima do seu amor; e ao mesmo tempo constituiu-o sinal e penhor de misericórdia e de graça para as necessidades da Igreja nos tempos modernos». Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 4, 43, 52: AAS 48 (1956), 311, 336, 340.

[72]  Catequese (8 de junho de 1994): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 11 de junho de 1994), 8.

[73]  Alocução do Angelus (1º de junho de 2008): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 7 de junho de 2008), 7.

[74] Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 58: AAS 48 (1956), 344.

[75] Cf. Ibid., 43: AAS 48 (1956), 336.

[76] «O valor das revelações privadas é essencialmente diverso do da única revelação pública: esta exige a nossa fé [...]. Uma revelação privada [...] é uma ajuda, que é oferecida, mas da qual não é obrigatório fazer uso». Bento XVI, Exort. ap. pós-sinodal Verbum Domini (30 de setembro de 2010), 14: AAS 102 (2010), 696.

[77] Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 52: AAS 48 (1956), 340.

[78]  Ibid., 58: AAS 48 (1956), 344.

[79]  Ibid., 57: AAS 48 (1956), 344.

[80] Francisco, Exort. ap. C’est la confiance (15 de outubro de 2023), 20: L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 19 de outubro de 2023), 6.

[81]  Ms A, 83 vº: S. Teresa do Menino Jesus, Obras completas (Avessadas, 1996), 214.

[82] S. Maria Faustina Kowalska, Diário, 22 de fevereiro de 1931, I Caderno, 47, (Curitiba, 2019), 34.

[83] Cf. Mišna Sukkâ IV, 5. 9.

[84]  Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial (5 de outubro de 1986): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 12 de outubro de 1986), 9.

[85]  Ata dos mártires de Lião. in: Eusébio de Cesareia, Hist. Eccles., V, 1, 22: PG 20, 418.

[86] Rufino de Aquiléia (Trad.), Hist. Eccles., V, 1, 22. in: Griechischen Christlichen Schriftsteller 9/1 – Eusebius Werke II/1, 411.

[87] S. Justino, Dial. 135: PG 6, 787.

[88] Novaciano, De Trinitate, 29: PL 3, 944. Cf. S. Gregório de Elvira, Tractatus Origenis de libris Sanctarum Scripturarum, tract. XX, 12: CCSL 69, 144.

[89] S. Ambrósio, Expl. Ps. I, 33: PL 14, 983-984.

[90] Cf. Tract. in Joann. Ev. 61, 6: PL 35, 1801.

[91]  Epist. III, ad Ruffinum, 4: PL 22, 334.

[92]  Sermones in Cant. 61, 4: PL 183, 1072.

[93] Cf. Expositio altera super Cantica Canticorum, c. 1: PL 180, 487.

[94] Guilherme de Saint-Thierry, De natura et dignitate amoris, 1: PL 184, 379.

[95] Idem, Meditativæ Orationes, meditatio VIII: PL 180, 230.

[96]  S. Boaventura, Lignum vitae, 30. Tradução em português: Liturgia das Horas (Ofício de Leituras da Solenidade do Sagrado Coração de Jesus – Segunda Leitura).

[97]  Ibidem.

[98] S. Gertrudes de Helfta , Legatus divinae pietatis, IV, 4, 4: SCh, 255, 66.

[99] Léon Dehon, Directoire spirituel des prêtres du Sacré Cœur de Jésus (Thournout, 1936), II, cap. VII, n. 141.

[100]  O Diálogo, 18.4.2 – Compreensão da caridade de Cristo; (São Paulo, 2021), 162-163.

[101] Cf. por exemplo: Angelus Walz, De veneratione divini cordis Iesu in Ordine Prædicatorum, Pontificium Institutum Angelicum, (Roma 1937).

[102] Rafael García Herreros, San Juan Eudes (Bogotá,1943), 42.

[103]  Carta a S. Joana Francisca de Chantal (24 de abril de 1610) in: Œuvres de Saint François de Sales, t. XIV, Lettres, vol.4 (Annecy, 1906), 289.

[104]  Sermão para o II Domingo de Quaresma (20 de fevereiro de 1622). in: o. c., t. X, Sermons, vol. 4 (Annecy, 1898), 243-244.

[105]  Carta a S. Joana Francisca de Chantal (31 de maio de 1612). in: o. c., t. XV, Lettres, vol. 5 (Annecy, 1908), 221.

[106]  Carta a Marie-Aimée de Blonay (18 de fevereiro de 1618). in: o. c., t. XVIII, Lettres, vol. 8 (Annecy, 1912), 170-171.

[107]  Carta a S. Joana Francisca de Chantal (fins de novembro de 1609). in: o. c., t. XIV, Lettres, vol. 4 (Annecy, 1906), 214.

[108]  Carta a S. Joana Francisca de Chantal (aprox. 25 de fevereiro de 1610). Ibid., 253.

[109]  Les vrais entretiens spirituels, 12e. Entretien. in: o. c., t. VI (Annecy, 1895), 217.

[110]  Carta a S. Joana Francisca de Chantal (10 de junho de 1611). in: o. c., t. XV, Lettres, vol. 5 (Annecy, 1908), 63.

[111] S. Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 53 (Braga, 1984), 57-58.

[112]  Ibid., 57.

[113]  Ibid., n. 55, o. c., 60.

[114] Cf. Dicastério para a Doutrina da Fé, Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos sobrenaturais (17 de maio de 2024), Apresentação – Razão da nova redação das Normas; I, A, 12.

[115] S. Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 92, o. c., 93.

[116] Idem, Carta à Ir. de la Barge (22 de outubro de 1689): Vie et Œuvres de la Bienheureuse Marguerite-Marie Alacoque, t. 2 (Paris, 1915), 468.

[117] Idem, Autobiografia, n. 53, o. c., 58.

[118]  Ibid., n. 55, o. c., 60.

[119] S. Cláudio de La Colombière, Ato de confiança. in: Escritos Espirituales del beato Claudio de la Colombière, S.J. (Bilbao, 1979), 110.

[120] Idem, Retiro em Londres (1 a 8 de fevereiro de 1677).

[121] Idem, Exercícios espirituais em Lião (outubro-novembro de 1674).

[122] Cf. Carta à Madame de Bondy (27 de abril de 1897).

[123]  Carta à Madame de Bondy (15 de abril de 1901). Cf. Carta à Madame de Bondy (5 de abril de 1909): «Por ti eu conheci as exposições do Santíssimo Sacramento, as bênçãos e o Sagrado Coração».

[124]  Carta à Madame de Bondy (7 de abril de 1890).

[125]  Carta ao Pe. Huvelin (27 de junho de 1892).

[126]  Méditations sur Ancien Testament (Roma, 1896).

[127]  Carta ao Pe. Huvelin (16 de maio de 1900).

[128]  Diário (17 de maio de 1906).

[129]  Carta 67, À Sra. Guérin (18 de novembro de 1888): S. Teresa do Menino Jesus, Obras completas (Avessadas, 1996), 373.

[130]  Carta 122, A Celina (14 de outubro de 1890): o. c., 445.

[131]  Poesia 23, Ao Sagrado Coração de Jesus (21 de junho ou de outubro de 1895): o. c., 735-736.

[132]  Carta 247, Ao Pe. Bellière (21 de junho de 1897): o. c., 625.

[133]  Últimos conselhos e recordações. Caderno Amarelo (11 de julho de 1897): o. c., 1156.

[134]  Carta 197, À Irmã. Maria do Sagrado Coração (17 de setembro de 1896): o. c., 567-569. Isto não significa que Teresa não oferecesse sacrifícios, dores e angústias como um modo de associar-se ao sofrimento de Cristo, mas que, quando queria ir ao fundo, preocupava-se em não dar a estes oferecimentos uma importância que não possuem.

[135]  Carta 142, A Celina (6 de julho de 1893): o. c., 476.

[136]  Carta 191, A Leónia (12 de julho de 1896): o. c., 557.

[137]  Carta 226, Ao Pe. Roulland (9 de maio de 1897): o. c., 608.

[138]  Carta 258, Ao Pe. Bellière (18 de julho de 1897): o. c., 639.

[139] S. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 104.

[140]  Ibid., n. 297.

[141] Cf. Carta a Inácio de Loyola (23 de janeiro de 1541).

[142]  De Vita P. Ignatii et Societatis Iesu initiis, cap. 8 in: Juan Alfonso de Polanco, S.J., Vita Ignatii Loiolae et rerum Societatis Iesu historia, t. I (Madri, 1894), 64.

[143] S. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 54.

[144] Cf. Ibid., n. 230ss.

[145] XXIII Congregação Geral da Companhia de Jesus, Decreto 46, 1. in: Institutum Societatis Iesu, vol. 2 (Florença, 1893), 511.

[146] En Él solo… la esperanza (Roma, 1982), 180.

[147]  Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial (5 de outubro de 1986): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 12 de outubro de 1986), 9.

[148]  Conferências aos Missionários (13 de agosto de 1655). A pobreza. in: S. Vicente de Paúl, Obras completas, t. 11/3 (Salamanca, 1974) , 156.

[149]  Conferências às Filhas da Caridade (9 de dezembro de 1657). in: o. c., t. 9/2 , 974.

[150] S. Daniel Comboni, Scritti, n. 3324. in: Daniele Comboni, Gli scritti (Bolonha, 1991), 998.

[151] Cf. Homilia na Missa de Canonização (18 de maio de 2003): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 24 de maio de 2003), 8-9.

[152] Carta enc. Dives in misericordia (30 de novembro de 1980), 13: AAS 72 (1980), 1219.

[153]  Catequese (20 de junho de 1979): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 24 de junho de 1979), 12.

[154] Missionários Combonianos do Coração de Jesus, Regra de Vida, Constituições e Diretório Geral (Roma, 1988), 3.

[155] Religiosas do Sagrado Coração de Jesus (Sociedade do Sagrado Coração), Constituições de 1982, 7.

[156] Carta enc. Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928), 14: AAS 20 (1928), 174.

[157] Quando é exercitada a virtude da fé referida a Cristo, a alma acede não só a recordações, mas à realidade da sua vida divina (cf. S. Tomás de Aquino, Summa Theologiæ, II-II, q. 1, a. 2, ad 2; q. 4, a. 1).

[158] Carta enc. Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928), 14: AAS 20 (1928), 174.

[159] Francisco, Homilia na Missa Crismal (28 de março de 2024): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 28 de março de 2024), 4-5.

[160] S. Inácio de Loyola, Exercícios Espirituais, n. 203.

[161] Francisco, Homilia na Missa Crismal (28 de março de 2024): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 28 de março de 2024), 4.

[162] S. Margarida Maria Alacoque, Autobiografia, n. 55, o. c., 60.

[163] Idem, Carta ao Pe. Croiset (3 de novembro de 1689): Vie et Œuvres de la Bienheureuse Marguerite-Marie Alacoque, t. 2 (Paris, 1915), 576-577.

[164] Idem, Autobiografia, n. 92, o. c., 93.

[165] Carta enc. Annum Sacrum (25 de maio de 1899): ASS 31 (1898-1899), 649.

[166] Juliano, Epist. XLIX ad Arsacium Pontificem Galatiae (Mainz, 1828), 90-91.

[167]  Ibidem.

[168] Dicastério para a Doutrina da Fé, Declaração Dignitas Infinita (2 de abril de 2024), 19.

[169] Cf. Bento XVI, Carta ao Prepósito Geral da Companhia de Jesus na ocasião do 50º aniversário da Encíclica Haurietis Aquas (15 de maio de 2006): AAS 98 (2006), 461.

[170] In Num. homil. 12, 1: PG 12, 657.

[171] Epist. 29, 24: PL 16, 1060.

[172]  Adv. Arium 1, 8: PL 8, 1044.

[173] Cf. Tract. in Joann. Ev. 32, 4: PL 35, 1643.

[174]  Expos. in Ev. S. Joannis, cap. 7, lectio 5.

[175] Pio XII, Carta enc. Haurietis Aquas (15 de maio de 1956), 20: AAS 48 (1956), 321.

[176] S. João Paulo II, Carta enc. Redemptoris Mater (25 de março de 1987), 38: AAS 79 (1987), 411.

[177] Conc. Ecum. Vaticano II, Const. dogm. Lumen Gentium, 62.

[178]  Ibid., 60.

[179]  Sermones super Cant., XX, 4: PL 183, 869.

[180]  Introdução à vida devota, p. III, c. 35. in: Œuvres de Saint François de Sales, t. III, (Annecy, 1893), 254-255.

[181]  Sermão para o XVII Domingo depois de Pentecostes. in: o. c., t. IX, (Annecy, 1897), Sermons, vol. 3, 200-201.

[182]  Retiro feito em Nazaré (5-15 de novembro de 1897).

[183] A partir de 19 de março de 1902, todas as suas cartas são encabeçadas com as palavras Iesus Caritas, separadas por um coração encimado por uma cruz.

[184]  Carta ao Pe. Huvelin (15 de julho de 1904).

[185]  Carta a D. Martin (25 de janeiro de 1903).

[186]  Anexo VI. in: René Voillaume, Les fraternités du Père de Foucauld (Paris, 1946), 173.

[187]  Méditations des saints Évangiles sur les passages relatifs à quinze vertus (Nazaré, 1897-1898), Charité 77 ( Mt 20,28). in: Charles de Foucauld, Aux plus petits de mes frères, (Paris, 1973), 82.

[188]  Ibid., Charité 90 ( Mt 27, 30). in: o. c., 95.

[189] Henri Huvelin, Quelques Directeurs d’Âmes au XVII siècle (Paris, 1911), 97

[190]  Conferências às Filhas da Caridade (11 de novembro de 1657). in: S. Vicente de Paúl, Obras completas, t. 9/2 (Salamanca, 1974) , 917.

[191]  Regras comuns da Congregação da Missão (17 de maio de 1658), c. 2, 6. in: o. c., t. 10, 470.

[192]  Carta ao Prepósito-Geral da Companhia de Jesus, Paray-le-Monial (5 de outubro de 1986): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 12 de outubro de 1986), 9.

[193] S. João Paulo II, Exort. ap. pós-sinodal Reconciliatio et Pænitentia (2 de dezembro de 1984), 16: AAS 77 (1985), 215.

[194] Cf. Carta enc. Sollicitudo Rei Socialis (30 de dezembro de 1987), 36: AAS 80 (1988), 561-562.

[195] Carta enc. Centesimus annus (1º de maio de 1991), 41: AAS 83 (1991), 844-845.

[196]  Catecismo da Igreja Católica, n. 1888.

[197] Cf. Catequese (8 de junho de 1994): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 11 de junho de 1994), 8.

[198] Francisco, Discurso aos participantes do Colóquio internacional “Réparer l´irréparable”, no 350º aniversário das aparições de Jesus em Paray-le-Monial (4 de maio de 2024): L’Osservatore Romano (ed. quotidiana de 4 de maio de 2024), p. 12.

[199]  Ibidem.

[200] Idem, Homilia na Missa matutina de Santa Marta (6 de março de 2018): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 15 de março de 2018), 12-13.

[201] Idem, Discurso aos participantes do Colóquio internacional “Réparer l´irréparable”, no 350º aniversário das aparições de Jesus em Paray-le-Monial (4 de maio de 2024): L’Osservatore Romano (4 de maio de 2024), p. 12.

[202] Idem, Homilia na Missa Crismal (28 de março de 2024): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 28 de março de 2024), 5.

[203]  Ibidem.

[204]  Ibidem.

[205] Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 80: AAS 107 (2015), 879.

[206]  Catecismo da Igreja Católica, n. 1085.

[207]  Ibid., n. 268.

[208] Autobiografia, n. 53: o. c., 57

[209]  Ms A, 84 rº: S. Teresa do Menino Jesus, Obras completas (Avessadas, 1996), 214-215.

[210]  Ibid., 215.

[211]  Ibidem.

[212]  Ms A, 83 vº: o. c., 214. Cf. Carta 226, Ao Pe. Roulland (9 de maio de 1897): o. c., 606-610.

[213] Oração 6. Oferecimento de mim mesma como Vítima de Holocausto ao Amor Misericordioso de Deus, 2 rº–2 vº: o. c., 1078.

[214]  Ms B, 3 vº: o. c., 230.

[215]  Carta 186, A Leónia (11 de abril de 1896): o. c., 549.

[216]  Carta 258, Ao Pe. Bellière (18 de julho de 1897): o. c., 557.

[217] Pio XI, Carta enc. Miserentissimus Redemptor (8 de maio de 1928), 6: AAS 20 (1928), 169.

[218]  Ibid., 11: AAS 20 (1928), 172.

[219] S. João Paulo II, Catequese (20 de junho de 1979): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 24 de junho de 1979), 12.

[220] Francisco, Homilia na Missa matutina de Santa Marta (27 de junho de 2014): L’Osservatore Romano (ed. semanal em espanhol de 4 de julho de 2014), 10.

[221]  Mensagem por ocasião do centenário da consagração do género humano ao divino Coração de Jesus (Varsóvia, 11 de junho de 1999): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 19 de junho de 1999), 2.

[222]  Ibidem.

[223]  Carta a D. Louis-Marie Billé, Arcebispo de Lião, por ocasião da peregrinação a Paray-le-Monial (4 de junho de 1999): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 19 de junho de 1999), 1.

[224] Conferências aos Missionários (22 de agosto de 1655). in: S. Vicente de Paúl, o. c., t. 11/3 , 190.

[225] Carta Diserti interpretes (25 de maio de 1965): Enchiridion della Vita Consacrata (Bolonha/Milão, 2001), n. 3809.

[226]  Vida Nova, XIX, 5-6. Trad. de Carlos Eduardo Soveral, (Lisboa, 1993), 39.

[227]  Ms A, 45 vº: S. Teresa do Menino Jesus, Obras completas (Avessadas, 1996), 143.

Ser ministro extraordinário da Comunhão

No dia da Visão um grupo de crianças que se preparam para receber a primeira comunhão tiveram um pequenino encontro, com alguns testemunhos. Partilhamos aqui o testemunho da Anabela Pinto, MEC - Ministra Extraordinária da Comunhão:

Hoje, neste dia tão especial para a nossa paróquia, em que refletimos sobre a nossa missão e visão enquanto comunidade de fé, gostaria de partilhar convosco a minha experiência como ministro extraordinário da comunhão. Este ministério, no qual tenho o privilégio de servir, não é apenas uma tarefa ou uma responsabilidade, mas uma verdadeira expressão do amor de Deus na minha vida e na vida da nossa comunidade.

Ser ministro da comunhão é, antes de mais, um ato de fé. É estar ao serviço do Senhor e dos irmãos, ajudando na distribuição do Corpo e Sangue de Cristo durante a Eucaristia, que é o ponto central da nossa fé católica. Mais do que apenas "dar" a comunhão, é estar consciente de que estamos a ser instrumentos de Deus, levando Cristo vivo até ao coração de cada fiel. Cada vez que entrego a hóstia, sei que estou a participar de algo profundamente sagrado e transformador. Este ministério, tão humilde e simples, carrega em si uma grandeza espiritual que não consigo descrever plenamente.

O que me levou a ser ministro da comunhão?

Foram muitos os motivos que me trouxeram até aqui. Em primeiro lugar, a minha fé pessoal. Ao longo do tempo, fui percebendo que Deus me chamava para uma participação mais ativa na Igreja. Sentia o desejo de não ser apenas alguém que "recebe", mas também alguém que se entrega, que partilha. Esse desejo foi crescendo em mim e encontrei no ministério da comunhão uma forma concreta de expressar a minha fé de maneira ativa, motivo pelo qual aceitei quando o pároco me fez o convite

Depois, há a comunidade. Nós, enquanto Igreja, somos um corpo. E como parte desse corpo, somos chamados a cuidar uns dos outros. Tornar-me ministro da comunhão foi também uma resposta a esse chamado de cuidar, de estar presente para os outros, de servir. Quando levamos a Eucaristia aos doentes ou a quem não pode estar fisicamente presente nas celebrações, vemos o quanto isso significa para eles. A comunhão não é apenas uma partilha de fé, mas também uma partilha de presença, de consolo e de esperança.

E por isso, considero este ministério um verdadeiro privilégio. Poder ajudar a distribuir o Corpo e Sangue de Cristo é algo que me enche de humildade e gratidão.

Não porque eu seja especial ou merecedor, mas porque Deus, em Sua infinita bondade, confia em nós, leigos, para sermos canais da Sua graça. Cada vez que estou ali, na fila da comunhão, e digo "o Corpo de Cristo", vejo nos olhos das pessoas uma fé que me toca profundamente. Sinto que estou a ajudar a alimentar espiritualmente a nossa comunidade, e isso é uma alegria sem igual.

Ser ministro da comunhão é, acima de tudo, serviço ao próximo. Num mundo onde muitas vezes impera o egoísmo e a indiferença, o ministério da comunhão é um testemunho de que a fé nos chama a algo maior: a amar e a servir, tal como Jesus fez.

Quando levamos a comunhão a alguém que está doente ou em sofrimento, levamos também a presença de Cristo, o consolo de que Ele está connosco em todas as circunstâncias da vida.

Mas, além de tudo isso, ser ministro da comunhão é uma oportunidade de crescimento espiritual. A cada celebração, a cada encontro com os irmãos, sinto que a minha própria fé é renovada. A Eucaristia não é apenas alimento para quem a recebe, mas também para quem a distribui. Sinto-me profundamente abençoado por poder viver essa experiência e por poder partilhá-la com a nossa comunidade.

Hoje, convido-vos a refletir sobre o vosso próprio papel na Igreja. Talvez Deus esteja também a chamar-vos para um serviço, para um ministério. Talvez sintam esse desejo de contribuir, de participar mais ativamente na vida da nossa paróquia. Se for o caso, encorajo-vos a responder a esse chamado com confiança e alegria. Ser parte ativa na Igreja não só transforma as nossas vidas, mas também fortalece a nossa comunidade.

Quero terminar agradecendo a todos os que, de alguma forma, contribuem para a vivência da nossa fé em comunidade. Seja como ministros, catequistas, membros do grupo de canto ou em outros serviços. Cada um de nós, com os seus dons e talentos, é essencial para a missão que Deus nos confiou,

Que o Senhor continue a abençoar a nossa paróquia, a nossa caminhada de fé e cada um de nós. E que possamos sempre encontrar na Eucaristia a força e a inspiração para sermos uma Igreja viva, em missão e ao serviço dos nossos irmãos.

Desligar, estar e aprofundar

Para quem “desligar” é o primeiro desafio … muito típico em quem experimenta no trabalho alguma falta de “limites”, qual aparência de bem e generosidade, desligar é um enorme exercício de humildade. E se nas férias ninguém precisar de mim?

É tempo de (DES)LIGAR.

Para quem este exercício é fácil, aproveite e agradeça o dom e simplesmente passe para a dica seguinte: ESTAR.

Mas para quem “desligar” é o primeiro desafio … muito típico em quem experimenta no trabalho alguma falta de “limites”, qual aparência de bem e de generosidade, não se esqueça que desligar é um enorme exercício de humildade. Exige muita humildade. E se, durante as férias, ninguém precisar de mim e ninguém me ligar? E se, durante as férias, alguma coisa séria acontecer e – quem fica – tiver de resolver e o fizer ainda melhor? E se, depois de férias, estiver tudo na mesma? E se, depois de férias, concluir que – afinal – muito pouco (ou quase nada) depende de mim?

Quando vamos de férias, precisamente para descansar do dia a dia, da rotina, das tarefas, até da missão, desligamos precisamente para nos ligarmos a nós próprios, à nossa família e a Deus e nutrirmos a nossa vida, as nossas escolhas e a nossa vocação. E se, afinal, cuidar de mim, dos meus e dos que me estão próximos for tudo o que me é pedido agora?

Desligar não significa esquecer nem abandonar. Significa confiar. Significa acreditar que “não há vazios”, como me disse um amigo, e que outros – na minha ausência – cuidarão. Significa trazer o trabalho e “com quem” e “para quem” se trabalha no coração, mas já não na cabeça (essa demora mais um pouco a desligar … sejamos pacientes) e já não na agenda, pois essa ficou em casa. Em substituição da agenda, trouxe na mala livros que me vão levar a conhecer outros lugares, outras histórias e outras vidas.

No último mês, sob alguns desafios mais exigentes (vulgo stress), li o livro “Misericórdia” da Lídia Jorge. É um livro maravilhoso sobre o tempo, a vida, o cuidar. Este livro vai facilitar a vida a quem tem mais dificuldade em desligar, pois conquista-nos, agarra-nos e transporta-nos ao lar Hotel Paraíso, hotel de não-sei-quantas-estrelas, para testemunhar (sem a poder consolar) como a Dona Alberti saboreia cada dia e teme a noite até ao momento de “desligar” e de partir.

(Ana Sofia Marques)

É, também, tempo de ESTAR.

Passado o primeiro cabo do desligar, impõe-se o estar. Estar implica deixar aquilo com que não estamos confrontados e depararmo-nos somente com o que o confronta. Fala-se, muitas vezes, não apenas no estar, mas no “estar inteiro”. Viver plenamente o que se tem pela frente.

Parece ser a isso que Santo Inácio se refere quando escreve: “Não é o muito saber que sacia e satisfaz a alma, mas o sentir e saborear intensamente as coisas”. Estar não é mais do que dispor-se a uma condição em que se pode saborear intensamente as coisas.

Estar pode ser assustador ou até humilhante, porque implica saborear intensamente tudo aquilo que Deus vai pondo no nosso caminho. Ora, nem sempre o nosso caminho tem aquilo que nos apetecia que tivesse.

Por vezes, somos confrontados com o sofrimento e a dor e estar no sofrimento e na dor é incómodo e desconfortável. Pode ser humilhante, até. Outras vezes, somos confrontados com o tédio, que parece ser um mal ainda maior que o sofrimento, nos dias que correm. O tédio faz-nos sentir que estamos a perder alguma coisa, num mundo em que tudo se orienta para uma inexorável produtividade. Faz-nos sentir vazios e sem sentido. E acaba por nos levar a produzir ou encontrar conforto numa qualquer preocupação da qual tínhamos desligado. Então, deixamos de estar.

Seja no sofrimento, no tédio ou na mais profunda alegria, estar implica confiar e entregar-se a Deus e ao que ele nos pede que vivamos a cada momento. Alegrando-nos com o que Ele nos pede que nos alegre, preocupando-nos com o Ele nos pede que nos preocupe, sofrendo com o que Ele nos pede que soframos. Estando onde Ele nos pede que estejamos.

Fica a proposta de uma oração que pode ajudar a estar.

Oração da Serenidade:

“Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisas que não posso mudar,
Coragem para mudar aquelas que posso,
E sabedoria para distinguir umas das outras.
Vivendo um dia de cada vez,
Desfrutando um momento de cada vez,
Aceitando as dificuldades como um caminho para alcançar a paz,
Tomando, como Ele fez, este mundo pecador como ele é,
E não como eu gostaria que ele fosse,
Confiando que Ele fará tudo dar certo se eu me entregar à Sua vontade,
Para que eu possa ser razoavelmente feliz nesta vida
E sumamente feliz com Ele para sempre na próxima.”

(Miguel Simões Correia)

 

Chegados aqui, (des)ligados e inteiramente presentes, o tempo de férias convida ao APROFUNDAR.

Livres (tanto quanto possível) do stress do quotidiano e concentrados no presente, somos levados a ver mais fundo, a sentir mais intensamente e a dar passos, seja para dentro – enraizando mais profundamente as nossas escolhas – seja para fora – estendendo os nossos ramos para novos céus.

O verão convida-nos a parar para ir mais longe, a fechar os olhos para ver melhor, a fazer silêncio para escutar uma Voz que nos chama e nos envia. Sugiro um pequeno exercício, porque não diário, para este terceiro movimento: escolher uma música (ou deixar que seja ela a escolher-nos, ao acaso de um algoritmo ou da playlist de uma esplanada) e escutar a letra e a melodia como algo que é dito para mim, para me desinstalar e me levar a “ver novas todas as coisas”.

Tomemos, por exemplo, o tema “Verão” dos The Gift:

Onde me sinto chamado a «provar a sorte, tentar, inventar» para que a minha vida tenha mais Vida e, sobretudo, seja melhor canal dessa mesma Vida?

Onde palpita esse «Amor que é só meu» porque Alguém conhece o meu íntimo e ainda assim se decide a levantar-me do barro da minha fragilidade para ser seu instrumento?

Que novidade e que surpresas me esperam nesse «amanhã [que] será bem melhor»?

(António Ary, sj)

Deus fala no silêncio

«É no silêncio que encontramos Deus,
e é no silêncio que descobrimos quem realmente somos.»
Bento XVI

Cala-te e recolhe-te!

Por um momento, o mais longo que te for possível, não peças nada, não supliques, não te lamentes, não te preocupes, não te desanimes.
Por um momento cala, não só a tua voz exterior, mas também a tua voz interior.
Por um momento, (pelo menos tenta), deixa de imaginar situações que vives, deixa de pensar na tua vida e até na vida dos outros por quem intercedes, faz silêncio na tua mente.
Por um momento, não te preocupes se estás de pé, sentado, deitado ou a andar, mas apenas se estás, totalmente presente, neste momento.
Por um momento, não penses se és capaz, se consegues, mas apenas abandona-te e deixa-te estar, assim, em silêncio.
Ah, como Ele gosta do silêncio, do silêncio activo, ou seja, daquele que faz silêncio apenas para O ouvir.
Por enquanto ainda não consegues distinguir o que é o teu silêncio, ou melhor aquilo que apesar de todo o silêncio sentes, e aquilo que Ele já te faz sentir.
É o momento do amor, do puro amor, que é o d’Ele, claro, por ti e em ti.
Não consegues entender bem, mas, ou no teu coração ou na tua mente, começas a perceber palavras ou imagens, ou seja lá o que for, mas sentes que é Ele que fala contigo.
Ah, não ouses agora responder-Lhe, não ouses quebrar o teu silêncio, apenas escuta com o teu coração, com a tua mente, com todo o teu ser, aquilo que Ele te diz, aquilo que Ele te mostra, aquilo que Ele te faz viver, agora, neste momento.
Deixa-te tomar inteiramente por Ele.
Já não és tu que pensas, é Ele que pensa em ti, já não és tu que falas, é Ele que fala em ti, já não és tu que sentes, é Ele que sente em ti, já não és tu que amas, é Ele que ama em ti.
Por este momento conheces-te verdadeiramente, ou seja, percebes bem que sem Ele nada és, nem nada tens, mas com Ele tudo se transforma, e sabes, por este momento, que Ele é o tudo em ti, que Ele é o amor em ti, que Ele é a vida em ti.
Deixa que o suspiro de vida saia do teu coração, e agora sim, ainda imerso n’Ele, abre a tua boca e diz-Lhe cheio de amor, como uma revelação que Ele mesmo te deu:

Obrigado, meu Senhor e meu Deus!

Marinha Grande, 8 de Julho de 2024
Joaquim Mexia Alves

Ser Testemunha

Não podemos falar do testemunho cristão sem falar do Espírito Santo.
Podemos nós dar testemunho de Cristo sem ser o Espírito Santo a dá-lo em nós, ou melhor servindo-se de nós para o dar?
Só depois do Pentecostes, os Apóstolos tiveram a coragem e também as palavras, (Pedro era um homem tão simples onde foi ele arranjar as palavras?) para darem testemunho de Cristo, para anunciarem Cristo, para proclamarem com palavras, gestos e a própria vida o Evangelho, a Boa Nova de Jesus Cristo.
E aqueles que se lhes seguiram fizeram-no também, porque o Espírito Santo foi derramado neles pela imposição das mãos.
É Jesus quem nos diz muito claramente que temos de ser testemunhas da Boa Nova.
Dos Actos dos Apóstolos:
«Mas ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em Jerusalém, por toda a Judeia e Samaria e até aos confins do mundo.» Act 1, 8
Portanto, o testemunho dos cristãos é imperativo, é decisivo, para que o Evangelho chegue a todo o lado. Lembremo-nos da narrativa da Samaritana no Evangelho de São João:
«Muitos samaritanos daquela cidade acreditaram nele devido às palavras da mulher, que testemunhava» Jo 4, 39
Pelo testemunho daquela mulher muitos foram à procura de Jesus Cristo para O ouvirem e serem tocados por Ele.
Depois … depois o “resto” é com Ele.
«Já não é pelas tuas palavras que acreditamos; nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é verdadeiramente o Salvador do mundo.» Jo 4, 42

Escreve o Frei Raniero Cantalamessa, hoje, Cardeal, no seu livro “Vem, Espírito Criador”:
«Em certo sentido, o Espírito Santo tem necessidade de nós para ser Paráclito. Ele quer consolar, defender, exortar; mas não tem boca, mãos, olhos, para dar corpo à sua consolação.
Ou melhor, tem as nossas mãos, os nossos olhos, a nossa boca

Há muitos anos atrás, talvez 1998 ou 1999, numa Assembleia da Pneumavita em Fátima, ao princípio da tarde o Pe Lapa pediu-me que fosse ter com ele ao palco.
Fui, obviamente, e fui surpreendido quando ele me disse que queria que eu desse testemunho da minha vida, da minha conversão, logo a seguir.
Olhei, vi aquele mar de gente e fiquei em pânico.
Eu tinha começado a minha caminhada há tão pouco tempo!
Recorri ao Pe António Fernandes que me levou para trás do palco e rezou por mim.
Depois abriu a Bíblia e leu-me esta Palavra:
«Por isso recomendo-te que reacendas o dom de Deus que se encontra em ti, pela imposição das minhas mãos, pois Deus não nos concedeu um espírito de timidez, mas de fortaleza, de amor e de bom senso. Portanto, não te envergonhes de dar testemunho de Nosso Senhor, nem de mim, seu prisioneiro, mas compartilha o meu sofrimento pelo Evangelho, apoiado na força de Deus.» 2 Tm 1, 6-8

Aquela Palavra deu-me um ânimo, uma força que eu não conhecia em mim que, ainda para mais, eu não gostava de falar em público.
Ainda hoje em dia, de quando em vez, há pessoas que vêm ter comigo e me lembram esse testemunho.
As coisas que o Espírito Santo faz!!!

Dar testemunho é entregar a vida a Cristo pelo outro, ou seja, é sair de nós próprios, dos nossos medos, das nossas vergonhas e deixando-nos conduzir pelo Espírito Santo anunciarmos com as nossas vidas a Boa Nova de Jesus Cristo.

Já não nos interessa se somos “mal vistos”, se não estamos a viver segundo o que o mundo quer, e já não nos importamos com as eventuais consequências que nos podem acontecer, porque não podemos calar Cristo que vive em nós, porque não podemos calar o amor do Pai que sentimos em nós, porque não podemos aprisionar o Espírito Santo em nós.

E o nosso testemunhar não têm só a ver com o que dizemos, com as palavras que proferimos, arrisco até a dizer que, mais importante do que as palavras, são as nossas atitudes, os nossos gestos, a nossa simpatia, a nossa ajuda aos que de nós necessitam, quer material, quer espiritualmente, e, também, muito especialmente, a alegria com que vivemos e testemunhamos.

Claro que não é a alegria da gargalhada fácil, mas alegria que nos vem de termos Jesus Cristo no coração e assim vivermos a paz e o amor que o Espírito Santo derrama em nós.

Mas São Paulo na Carta a Timóteo que acima referi, fala-nos de termos um espírito que Deus nos concede «de fortaleza, de amor e de bom senso.»

Um espírito de bom senso!

Realmente o nosso testemunho tem que ser percorrido pelo bom senso, o que significa, por exemplo, o não nos impormos, o não deixarmos falar os outros, o não ouvirmos os outros, o não lhes respondermos com um simples e duro “estás errado”, mas sim procurar ajudar o outro a encontrar o caminho que nós já vamos percorrendo.

Há tempos atrás, numa reunião dos Cursos Alpha a nível nacional, ouvi um sacerdote de Braga dizer uma verdade de que muitas vezes não nos lembramos.
Quando estamos a conversar ou a ouvir outros que querem desabafar, pedir conselho, já temos muitas vezes as nossas respostas, da nossa pretensa sabedoria, na “ponta da língua” para responder ao outro, e, por isso, nem sequer quase o deixamos falar, não ouvindo tudo o que nos quer dizer.
Isto é tão verdade!
Há uns anos atrás ouvi uma senhora que queria falar comigo, pedir conselho.
Sentámo-nos e a senhora começou a falar, e não se calava, e eu cheio de vontade de a presentear com algumas “pérolas da minha pretensa sabedoria”.
Ao fim de algum tempo calou-se, olhou para mim, deu-me um abraço e disse-me: eu só queria que ouvissem!
Eu não tinha dito nada!
Numa reunião do RCC de Lisboa ouvi o Pe Victor Gonçalves dizer a seguinte frase que ele tinha lido algures:
«Não fales muito de Deus se não to pedirem, mas vive de tal maneira que to peçam.»

Realmente o testemunho não deve ser forçado, não deve ser, desculpem que o diga assim, como uma arma de arremesso, ou até "chato", mas sim algo que surge das circunstâncias, da oportunidade, do tal bom senso de que fala São Paulo.

O Pe Lapa, nos primeiros tempos do meu regresso a Deus e à Igreja, e, perante a minha ansiedade e activismo, chamou-me a atenção e disse-me fortemente para eu me acalmar e deixar que o Espírito Santo me conduzisse e não eu a querer conduzir o Espírito Santo.

Quantas vezes o fazemos nós, ou seja, quantas vezes não somos nós que queremos ter a condução do que fazemos e dizemos, quando afinal nós sem Ele nada somos.

Lembremo-nos do que referi no início destas palavras:
Nós estamos aqui porque os Apóstolos, cheios do Espírito Santo derramado em Pentecostes, deram testemunho das suas vidas tocadas por Jesus Cristo, pelo amor do Pai.

Nós somos agora, ou devemos ser, esses apóstolos deste tempo, ou seja, devemos dar testemunho de Jesus Cristo, envoltos no amor do Pai e sempre, mas sempre, guiados pelo Espírito Santo.

Não nos esqueçamos que um bom testemunho é sempre evangelizador.
Jesus Cristo diz hoje a cada um de nós:
«Ides receber uma força, a do Espírito Santo, que descerá sobre vós, e sereis minhas testemunhas em todo o Portugal, na Europa, e até aos confins do mundo.» cf Act 1, 8

Marinha Grande, 11 de Junho de 2024
Joaquim Mexia Alves

PORQUÊ PEDIR O ESPÍRITO SANTO?

Neste Domingo celebra-se a Solenidade de Pentecostes.

Porquê pedir o Espírito Santo, hoje e sempre?

Todos nós que somos baptizados recebemos o Espírito Santo pelo Baptismo, (tornámo-nos templos do Espírito Santo), pelo Crisma, e obviamente em cada celebração de um Sacramento em que participamos, celebrando, recebemos também e sempre o mesmo Espírito de Deus que constantemente se derrama na/em Igreja.

Porquê então pedi-Lo novamente, todos os dias das nossas vidas?

Em determinado momento da minha vida trabalhei em Angola, em duas fábricas, uma de tubo de aço e outra de chapa de zinco. Em ambas as fábricas existiam aquilo a que chamávamos tinas de galvanização.

Que me perdoem a explicação os experts na matéria, (e a falta de memória, já lá vão mais de trinta anos), as tinas de galvanização continham zinco em estado líquido, porque eram aquecidas por uma fonte de calor, que mantinha esse zinco nesse estado líquido.

Então, os tubos e chapas eram mergulhados nessas tinas, e, revestidos desse zinco líquido eram retirados e colocados a “secar”, digamos assim.

Obviamente, o aspecto desses tubos e chapas melhorava imenso, pois tornavam-se mais brilhantes, reflectindo a luz que neles incidisse, e, mais ainda, protegia-os da corrosão, da ferrugem, dos elementos exteriores que podiam alterar a sua “essência” e a missão para que tinham sido fabricados.

Ora nós cristãos, alguns de nós ou muitos de nós, somos um pouco assim como essas tinas de galvanização.

Pelo Baptismo recebemos o Espírito Santo e Ele está em nós, mas está muitas vezes como esse zinco líquido nas tinas de galvanização, “inerte”, não sendo utilizado.

Somos cristãos, temos o Espírito Santo, mas Ele não actua em nós, nada transforma, nada converte, sobretudo porque d’Ele muitas vezes não temos consciência e não a tendo, não O deixamos actuar nas nossas vidas.

Assim somos cristãos cinzentos, sem brilho, e nem reflectimos a luz que nos vem de Deus para sermos testemunhas da Luz.

Mais do que isso, não tomando consciência do Espírito Santo em nós, não O deixando actuar em nós, estamos desprotegidos perante as ameaças do mundo, (as tentações, os vícios, os rancores e ressentimentos, etc.), e por isso mesmo nos deixamos corromper, vivendo em pecado, e ao vivermos em pecado não cumprimos a missão que Ele nos deixou, perdendo-nos no mundo e muitas vezes fazendo perder aqueles que nos rodeiam.

Temos o Espírito Santo em nós, mas ninguém O “vê”, porque d’Ele não damos testemunho, porque não deixamos que Ele nos converta, nos transforme e nos guie.

Então este pedir o Espírito Santo todos os dias, (dado que já está em nós desde o Baptismo), é afinal pedir que Ele actue em nós, que Ele nos encha por completo, que Ele nos mostre o caminho, que Ele nos ilumine na Palavra, que Ele nos faça ver com os olhos da fé, (meu Senhor e meu Deus!), que Ele nos converta e conduza, que Ele nos santifique, não apenas para nossa salvação, mas também sobretudo para que sejamos testemunhas da Boa Nova e assim possamos ser “ocasião” para salvação de outros.

Então, para O recebermos, ou melhor, para que Ele seja presença viva nas nossas vidas, precisamos de nos abrir a Ele, porque abrindo-nos a Ele, abrimo-nos ao próprio Deus, e abrir-nos a Deus é abrir-nos ao amor, à conversão, à mudança de vida, é «renascer de novo», é querermos fazer em tudo e sempre a vontade de Deus.

Então, tudo se transforma, porque é Ele que ora em nós, é Ele que lê e medita connosco a Palavra de Deus, é Ele que nos abre o entendimento para que possamos reconhecer Jesus ao “partir do Pão”, é Ele que, dando-nos esse reconhecimento, nos leva a amar como Ele nos amou, fazendo assim de nós filhos de Deus reunidos e chamados a construir a Igreja.

E, afinal, pedir o Espírito Santo é fazer já a vontade de Deus, porque só Ele sabe o que nós precisamos e o que é melhor para nós.

«Digo-vos, pois: Pedi e ser-vos-á dado; procurai e achareis; batei e abrir-se-vos-á; porque todo aquele que pede, recebe; quem procura, encontra, e ao que bate, abrir-se-á.

Qual o pai de entre vós que, se o filho lhe pedir pão, lhe dará uma pedra? Ou, se lhe pedir um peixe, lhe dará uma serpente? Ou, se lhe pedir um ovo, lhe dará um escorpião?

Pois se vós, que sois maus, sabeis dar coisas boas aos vossos filhos, quanto mais o Pai do Céu dará o Espírito Santo àqueles que lho pedem!» Lc 11, 9-13


Vem Espírito Santo,

faz-me dócil às tuas moções, renova-me em cada momento, ora em mim, abre o meu entendimento à Palavra de Deus, faz-me sentir o amor do Pai, faz-me reconhecer Jesus nos Sacramentos, na Igreja, em cada irmã e em cada irmão, faz em mim e de mim a Tua vontade, para que eu seja nada e Tu, Espírito Santo, sejas tudo em mim, em cada momento da vida que Tu mesmo me dás.

Amen.

Marinha Grande, 14 de Maio de 2024 

Joaquim Mexia Alves

O LOUVOR LIBERTA

«Por volta da meia-noite, Paulo e Silas, em oração, entoavam louvores a Deus e os outros presos escutavam-nos.

De repente, sentiu-se um tremor de terra tão grande que abalou os alicerces da prisão. Todas as portas se abriram e soltaram-se as cadeias de todos os presos.»

Act 16, 25-26 - 1ª Leitura de hoje

Tantas vezes na minha vida que, perante problemas, tribulações e preocupações, em vez de pedir, ou melhor, em vez de só pedir, louvo a Deus pela situação que vivo, pedindo que me dê forças para aceitar e, se for de Sua vontade, tudo seja ultrapassado.

E tantas vezes me esqueço o fazer perante tantas situações dessas, e me desdobro em pedir, em me lamentar e até em reclamar.

A verdade é que sempre que, perante tais situações, louvo primeiro a Deus e depois peço ajuda, a paz e a serenidade tomam conta de mim, e assim consigo enfrentar essas situações com confiança e esperança renovadas.

E mesmo que algumas dessas situações não tenham o desfecho que, na minha fraqueza humana, julgo ser o melhor, a verdade é que aceito de coração aberto essas situações e tento tirar delas alguma lição para a vida, guiado pelo Espírito Santo.

A verdade é que sempre que assim procedo, é como se as “portas” e “cadeias” que me querem amarrar a essas situações, deixando-me triste e frustrado, se abram, e assim vivo na confiança e na esperança que me vem de Deus.

E porque não procedo sempre assim em todas essas situações?

Ah, isso não sei, não consigo explicar, mas talvez seja fruto de um qualquer cepticismo, de alguma fraqueza que nesses momentos me “ataca” e eu me deixo cair apenas em mim, olhando para mim, fechando-me em mim e não dando assim “espaço” a que Ele no Seu infinito amor acalme a “tempestade” na minha vida.

Sim, o louvor liberta e, mais do que liberta, enche de confiança, de esperança, de alegria, de paz e de vida.

Louvado sejas, Senhor, porque acalmas os mares revoltos das nossas vidas quando a Ti nos entregamos.

Joaquim M. Alves

*Na próxima sexta-feira,17 de Maio, o Joaquim acompanha a equipa de louvor e oração na Vigília de Pentecostes

Nota Pastoral na comemoração dos cinquenta anos do “25 de Abril”

1. Na comemoração do cinquentenário da Revolução de 25 de Abril de 1974 cabe aos Bispos de Portugal uma palavra que, sendo de congratulação, também seja de reflexão e revisão do caminho percorrido pela sociedade portuguesa, de que a Igreja faz parte.

Saudando todos quantos bem serviram e servem o país no sustento da democracia política e no desenvolvimento social e solidário, será também oportuno lembrar o que a Conferência Episcopal Portuguesa publicou em duas cartas pastorais de antes e depois da data que comemoramos. É o que fazemos aqui com brevidade, por ser um método simples e concreto de revermos o que se propôs, o que se conseguiu e o que falta.

 

2. Primeiramente a Carta Pastoral no décimo aniversário da “Pacem in Terris”, de 4 de maio de 1973, aplicando a Portugal os tópicos fundamentais da encíclica que S. João XXIII dedicara ao tema dos direitos humanos e da reta organização da vida social.

Não ignorando o que se fizera para dotar o país de mais riqueza, cultura, previdência e assistência, os Bispos acrescentavam palavras que cabe reproduzir, dada a precisão do diagnóstico, quase um ano antes do “25 de Abril”: «Não podemos descansar enquanto a expansão económica favorecer desmedidamente alguns, sem proporcionar a todos os cidadãos a parte equitativa que lhes cabe na produção e distribuição dos bens. Não poderemos deter-nos, no caminho do progresso, enquanto a agricultura continuar a ser um setor deprimido no confronto com a indústria e os serviços, enquanto as possibilidades de acesso à educação e à cultura não estiverem generalizadas a todos os portugueses, enquanto houver quem se sinta indefeso perante a doença e a velhice, enquanto os verdadeiros padrões de vida moral e cívica não impregnarem a sociedade inteira e lhe constituírem a autêntica armadura defensiva».

Uma “armadura defensiva” que requeria, segundo os Bispos, a maior participação de todos, incluindo pluralismo político, eleições livres, meios de comunicação igualmente livres e responsáveis e processos ética e juridicamente irrepreensíveis de manter a segurança.

Diretrizes assim prepararam certamente quem as recebeu para a situação que adviria um ano depois graças ao Movimento das Forças Armadas, cujo programa coincidia em boa parte com os referidos pontos da Carta Pastoral. Aliás, o “25 de Abril” traduzia também a vontade de terminar com a guerra ultramarina, cada vez mais insuportável para a população em geral e contestada por muitos católicos politicamente ativos.

 

3. Mais desenvolvida foi a Carta Pastoral sobre o contributo dos cristãos para a vida social e política, de 16 de julho de 1974, na qual os Bispos respondiam aos apelos entretanto recebidos para darem uma palavra de orientação naquele «momento de profundas mutações na vida do Povo português».

Assim fizeram, aludindo ao fim de dois períodos históricos, a saber, o do anterior regime e o do império ultramarino, com o que tal exigia de redefinição nacional. Referiam depois “claros e escuros” no que se passara desde abril, com a exaltação das liberdades cívicas e o fim do ostracismo internacional que sofríamos; e também com excessos que os Bispos reprovavam, mas não queriam sobrevalorizar por surgirem em fases de grande mutação social, a superar depois.

O documento episcopal apresentava igualmente o “conceito cristão de democracia”, que «parte da ideia do homem como pessoa, livre e responsável com destino próprio e transcendente, mas essencialmente solidário com os outros homens». Daqui que devesse ser respeitado nas suas agregações naturais ou solidárias, a começar pela família, sendo apoiado e não substituído pelo Estado, servidor do bem comum de todos.

Prosseguindo com as opções partidárias e esclarecendo as diferentes ideias que as suportavam, os Bispos concluíam com um apelo veemente à participação dos católicos na vida nacional a refazer: «Apelamos, pois, para a presença ativa dos católicos, ao lado de todos os homens de boa vontade, nas primeiras linhas da luta pelo Portugal de amanhã: nos partidos, sim, mas também nos sindicatos, nos meios de comunicação social, nos centros de cultura, etc.».

 

4. Passado meio século, podemos e devemos reconhecer tudo quanto se conseguiu de positivo no Portugal democrático, a começar pela liberdade política, o fim da guerra em África e a dedicação cívica de tantos, das autarquias ao Estado, da vida nacional à integração europeia. Estabilizada a situação no novo quadro constitucional, muito se conseguiu para responder a várias necessidades da altura ou depois surgidas – e muita participação houve também por parte de católicos politicamente comprometidos e de instituições de solidariedade social ligadas à Igreja.

Este mesmo impulso solidário, que ganhámos em cinquenta anos de vida democrática, é o que nos levará a todos, cidadãos dum país entretanto enriquecido com populações advindas doutros espaços e culturas, a atingir novas metas nos campos da família, da habitação e do trabalho, da educação e da saúde e de tudo o que garanta uma vida digna a quantos somos hoje e seremos amanhã. Vida devidamente respeitada e acompanhada em todas as suas fases e circunstâncias, da conceção à morte natural.

Retomemos as intenções dos autores do “25 de Abril”, no sentido da democratização do país, do fim da guerra e do desenvolvimento geral. Intenções que nos continuam a reclamar nos dias de hoje.

No que à democracia diz respeito, necessário é que ela conte com a liberdade e a responsabilidade dos cidadãos, devidamente respeitados e estimulados para o incremento do bem comum. Tal apenas se consegue quando da família à escola e à vida social aprendamos a concertar a legítima diversidade de opiniões com a finalidade comum do bem de todos.

No que à paz diz respeito, lembremos que ela é fruto da justiça, dando a cada um o que lhe é devido para viver e conviver dignamente. Isto mesmo a nível pessoal e também de grupos sociais, étnicos ou povos, todos com direito à respetiva identidade e autonomia.

Quanto ao desenvolvimento, lembremos que ele se ativa em cada pessoa, respeitada e atendida no que requer para ser livre, criativa e responsável nas diversas projeções do seu ser. Esta finalidade do desenvolvimento de todos e de cada um constitui o verdadeiro objetivo da ação política e não pode garantir-se quando ela encubra ambições de entidades ou grupos, económicos ou ideológicos, nacionais ou internacionais que sejam.

Neste momento comemorativo do “25 de Abril” também os quatro princípios permanentes da Doutrina Social da Igreja – dignidade da pessoa humana, bem comum, subsidiariedade e solidariedade – nos levarão a prosseguir na senda então aberta.

Fátima, 11 de abril de 2024

A 209.ª Assembleia Plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), reunida em Fátima de 8 a 11 de abril de 2024, aprovou a nota pastoral “Sem a Eucaristia não podemos viver” por ocasião do 5.º Congresso Eucarístico Nacional.

«Toda a Igreja que peregrina em Portugal está convocada para este grande acontecimento eclesial que pretende reconhecer mais profundamente o mistério da Eucaristia e prestar-lhe um culto público nos laços da caridade evangelizadora. No Ano da Oração que estamos a viver, rumo ao Jubileu de 2025, podemos consolidar a arte de bem celebrar, o silêncio, a escuta, o canto, a música, a adoração e o maravilhamento da Eucaristia na sua nobre simplicidade e beleza», refere o comunicado da CEP onde é referida a congratulação com a presença do Cardeal José Tolentino de Mendonça enquanto Enviado Especial do Papa Francisco.

Sem a Eucaristia não podemos viver

Nota Pastoral por ocasião do 5.º Congresso Eucarístico Nacional

A propósito do 5.º Congresso Eucarístico Nacional a realizar-se em Braga, de 31 de maio a 2 de junho de 2024, sob o tema: «Partilhar o Pão, alimentar a Esperança. “Reconheceram-n’O ao partir o Pão” (Lc 24,35)», convidamos a todos a olhar a Eucaristia como o sacramento da Páscoa e a fonte esperançosa da salvação.

O congresso eucarístico nacional (www.congressoeucaristico.pt) é uma manifestação especial do culto eucarístico, considerado como uma “estação” para a qual a Conferência Episcopal Portuguesa convoca a Igreja que peregrina em Portugal, a fim de reconhecer mais profundamente o mistério da Eucaristia e lhe prestar um culto público nos laços da caridade evangelizadora.

Juntos, neste grande encontro eclesial, no Ano da Oração rumo ao Jubileu de 2025, podemos consolidar a arte de bem celebrar, o silêncio, a escuta, o canto, a música, a adoração e o maravilhamento da Eucaristia na sua nobre simplicidade e beleza.

1. Partilhar o pão, alimentar a esperança

Antes de «partir o pão», Cristo, «começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas, explicou-lhes, em todas as Escrituras, tudo o que lhe dizia respeito» (Lc 24,27). No partir do pão é o próprio Cristo que é partido no pão da Eucaristia, da caridade, no encontro com os pobres, os mais vulneráveis, os mais frágeis e com todas as necessidades do mundo em que vivemos para que tenhamos este sentido de plenitude e sejamos capazes de, à luz das Escrituras, reconhecê-los em todas as pessoas e situações da comunidade neste tempo tão complexo e delicado.

O Papa Francisco pede a toda a Igreja uma cultura eucarística, onde se mostrem as atitudes da comunhão, do serviço e da misericórdia: «capaz de inspirar os homens e as mulheres de boa vontade nos âmbitos da caridade, da solidariedade, da paz, da família, do cuidado da criação» (discurso à plenária do Pontifício Comité para os Congressos Eucarísticos Internacionais, 10 de novembro de 2018).

O tema do caminho está sempre presente na evangelização. A fé dos discípulos nasce no caminho, que não é apenas geográfico, mas é espiritual e atravessa a desilusão, as dúvidas, o vazio, a desconfiança da sua peregrinação na história.

A alegria do primeiro e fundamental anúncio é sempre o mesmo: «“Realmente o Senhor ressuscitou e apareceu a Simão!” E eles contaram o que lhes tinha acontecido pelo caminho e como Jesus se lhes dera a conhecer, ao partir o pão» (Lc 24, 34-35). O caminho conduz-nos ao encontro com Jesus Cristo e com os outros, com a comunidade cristã e com aqueles a quem somos enviados a testemunhar com a vida, a fé que acreditamos e celebramos.

2. Reconhecer Jesus Cristo ao partir do pão

O texto de Emaús, segundo a narração lucana, atinge o seu vértice quando o desconhecido peregrino, ou melhor, Cristo peregrino que não reconheceram logo, sentando-se à mesa com os dois discípulos desiludidos com o fim trágico de Jesus de Nazaré, «tomou o pão, pronunciou a bênção e, depois de o partir, entregou-lho. Então, os seus olhos abriram-se e reconheceram-no». Jesus Cristo, o Ressuscitado, manifesta-se vivo com o mesmo gesto de partir o pão, o grande gesto que realizou na noite da instituição da Eucaristia.

Por consequência, a celebração eucarística da ceia do Senhor deve ser o grande momento em que se mostra a alegria do reconhecimento («os seus olhos abriram-se e reconheceram-no») e da visão («vimos o Senhor», Jo 20,25). De facto, como se exprime na Oração Eucarística V, é grande a alegria de “ver” Jesus vivo: «sois verdadeiramente Santo e digno de glória, Deus, amigo dos homens, que sempre os acompanhais no seu caminho. Verdadeiramente bendito é o vosso Filho, que está presente no meio de nós quando nos reunimos no seu amor e, como outrora aos discípulos de Emaús, Ele nos explica o sentido da escritura e nos reparte o pão da vida», é grande a alegria de “ver” Jesus vivo. É a alegria da Páscoa que arde no coração.

3. O maravilhamento eucarístico

A experiência pascal é o paradigma cristão. Os discípulos foram fulminados de fora e tocados e feridos por dentro, a ponto de lhes arder o coração. «Não nos ardia o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?» (Lc 24,32).

O Cristianismo fundamenta-se numa experiência tocante, qualificante, que muda gente desesperada em testemunhas de uma vida transformada. Redescobrir a santidade como vocação batismal é um convite para todos e não um privilégio para poucos. Este é um imperativo para todos e para cada um de nós, como exorta o autor da Carta aos Hebreus: «procurai a paz com todos e a santidade, sem a qual ninguém verá o Senhor» (Heb 12,14).

A vida cristã só tem sentido como vida em Cristo. Deus é o Santo e, na sua santidade, somos chamados à mesma santidade de vida. Isto mesmo reza a Igreja na Liturgia: «Vós, Senhor, sois verdadeiramente Santo, sois a fonte de toda a santidade» (Oração Eucarística II). Deus é a vida dos Santos.

A celebração da Eucaristia prolonga-se na vida e na adoração eucarística com o culto eucarístico fora da Missa. Porque não promover em cada domingo a adoração eucarística comunitária nas nossas comunidades eclesiais? Porque não criar um lausperene eucarístico diocesano com todas as Paróquias e comunidades nas Unidades Pastorais?

De facto, «apenas na adoração, só diante do Senhor, é que recuperamos o gosto e a paixão pela evangelização. E, curiosamente, perdemos a oração de adoração; e todos, sacerdotes, bispos, consagradas, consagrados têm de a recuperar: recuperar aquele permanecer em silêncio diante do Senhor» (Papa Francisco, Lisboa, 2 de agosto de 2023).

4. O Domingo, Páscoa semanal

«Sine dominico non possumus!» Sem o Domingo do Senhor, sem o Dia do Senhor não podemos viver: assim responderam no ano 304 alguns cristãos de Abitínia, atual Tunísia, quando, surpreendidos na celebração eucarística dominical, que estava proibida. Eles foram conduzidos ante o juiz, que lhes perguntou por que, no Domingo, haviam celebrado a função religiosa cristã, sabendo que isso implicava castigo de morte. Não há Paróquia sem Domingo nem Domingo sem Paróquia.

A liturgia é o lugar do encontro com Jesus Cristo. De facto: «não nos basta ter uma vaga recordação da última Ceia: nós precisamos de estar presentes nessa Ceia, de poder ouvir a sua voz, de comer o seu Corpo e beber o seu Sangue: precisamos d’Ele. Na Eucaristia e em todos os sacramentos é-nos garantida a possibilidade de encontrar o Senhor Jesus e de ser alcançados pela potência da sua Páscoa» (Desiderio desideravi 11). É verdade que a Igreja faz a Eucaristia e a Eucaristia faz a Igreja, segundo o dinamismo pascal.

Nas circunstâncias atuais, o Domingo como o dia do Senhor fica, muitas vezes, reduzido a um “fim de semana”. Por isso, é necessário redescobrir o seu sentido verdadeiro. Pois, se o Domingo deixar de ser um dia, no qual haja espaço para a oração, o repouso, a união e a alegria, pode acontecer que, como referiu São João Paulo II: «o homem permaneça encerrado num horizonte tão restrito, que já não lhe permite ver o ‘céu’. Então, mesmo bem-trajado, torna-se intimamente incapaz de ‘festejar’». Apesar de tudo, a Igreja vive fielmente este dia semanal da Palavra e da Eucaristia.

A feliz oportunidade do 5.º Congresso Eucarístico Nacional orienta-nos para a centralidade da Eucaristia e do Domingo: na valorização da celebração eucarística para que seja, efetivamente, um momento de encontro com Deus e com os irmãos; na participação ativa e no envolvimento de todos nas diferentes celebrações litúrgicas; na formação de todos os ministérios, serviços e carismas; na promoção do crescimento e do amadurecimento espiritual de cada um; na Paróquia, como casa e escola de oração com as portas abertas.

Em Emaús, no dia de Páscoa, os apóstolos reconheceram Jesus ressuscitado ao partir do pão. Só à luz da Páscoa podemos celebrar e viver a Eucaristia. A partir da Eucaristia a Igreja faz-se sinodal, samaritana e missionária, na sabedoria do coração “eucarístico” da Virgem Santa Maria e dos santos e santas.

Fátima, 11 de abril de 2024

Dos filhos e do caminho de Fé

Sou catequista dos pais do 3º ano do Centro da Marinha Grande, mas antes sou mãe de uma menina de 9 anos que quer comungar desde os seus 2 anos.

Claro que aos 2 anos não se sabe o que é comungar… apenas partilhou no silêncio da comunhão “Eu também quero uma bolacha”. Todos se riram de forma carinhosa.

Foi difícil e complicado explicar o porquê de não o poder fazer. Foram semanas de choro com “baba e ranho” durante o momento da comunhão nas celebrações por não poder participar dessa “bolacha”.

Com o tempo foi aprendendo na sua pequenez o significado e a sua importância. E ia ficando satisfeita por cruzar os braços e poder ir na fila e receber a benção naquele momento que só alguns podiam antes participar.

Com a entrada no 1º ano de catequese voltou a questionar se seria nesse momento. E com paciência e ajuda de catequistas e padrinho voltamos a explicar que teria de conhecer melhor Jesus.

Quando iniciou o 3º ano, começou a jornada para mim. Eu tinha em mente: prepara-la para compreender o mistério. Começou a aprender que já não era uma bolacha, era o Corpo de Cristo. O fazer parte da mesa com Jesus. Pobre de mim. Fui percebendo que o caminho se faz caminhando e o que era essencial era fazê-la compreender que aquele momento era essencialmente querer ser como Jesus e estar com Ele no seu coração.

No dia 23 de Março acordei com uma criança aos saltos na minha cama a gritar: “Hoje é o dia da minha primeira comunhão”. Neste dia, quis fazê-la sentir feliz e amada e os preparativos foram feitos com muito cuidado.

A celebração começou na rua com o Evangelho e a benção dos ramos. Ela levou a cruz (coisa de mãe… encheu-me o coração). A celebração em si, foi linda e sinto-me muito feliz e orgulhosa tanto dos meus pais, como das crianças que têm feito um percurso constante e curioso.

E chegou o momento. A confusão do momento que é normal, para o momento único e esperado pela Rita. Queria que ela se sentisse apoiada naquele momento. Acho que quem estava naquele circulo viveu uma alegria que não se explica. Ao chegar ao banco, deitou a língua fora e disse…. não gosto do sabor. Eu como mãe disse-lhe que agora não era esse o momento, mas sim de falar com o Jesus que estava com ela nesse momento. E assim o fez…

Depois foi o momento da Consagração a Nossa Senhora e foi aqui que quebrei. Os meus olhos encheram-se de lagrimas. Acho que é o momento em que se percebe que os filhos não são nossos mas do mundo… senti que estava a começar a sua missão.

Não sei o que seguirá, mas a Rita vive com alegria neste mundo novo onde pode comungar e ao mesmo tempo, acolitar. Será que ela compreende este mistério?

Eu como mãe, começo achar que está a começar uma coisa muito bonita.

Daniela Sousa
é catequista do grupo de pais do terceiro ano do centro da Marinha Grande

CAMINHO DE QUARESMA XIV

O caminho quaresmal é também um caminho de esperança.
Abrimo-nos ao Espírito Santo para que Ele faça o caminho connosco, ou melhor, para que Ele nos guie no caminho.
E com Ele esperamos perceber melhor as nossas fraquezas, as nossas faltas, para nos podermos emendar, confiando e esperando sempre o perdão de Deus.
A esperança não é passiva mas activa.
Não é ficar sentado à espera do prometido, mas fazer caminho de esperança para viver na esperança do que já nos foi alcançado em Jesus Cristo.
A esperança não afasta de nós as tribulações e contrariedades, mas faz-nos enfrentá-las e vencê-las, aumentado a própria esperança de alcançarmos a vida em Cristo.
A esperança não é isenta de fundamento.
É alicerçada na fé, que nos leva à confiança em Cristo que assim nos enche de esperança.
A esperança não é para depois, é já e agora, e torna-se presente à medida que o bem que esperamos, vai acontecendo em nós e nos outros.
A esperança é vida.
Quem pode viver sem esperança?
A esperança constrói, une, exorta, alegra, dá vida para além da vida.
A esperança cristã é uma esperança presente, que se realiza agora já e se completa depois na vida eterna.
A esperança é a seiva da vida cristã!

Senhor, sabes como tantas vezes não me entrego, não confio, não me deixo conduzir por Ti.
Por isso mesmo, tantas vezes, a minha esperança é fraca, é apenas um momento e não a Tua vida em mim. Aumenta em mim, Senhor, a fé, que leva à confiança que nos enche de esperança.
Amen.


Joaquim M. Alves

Conversão pelo Cardeal Raniero Cantalamessa

A palavra de hoje a acolher é aquela que Jesus dirigiu à adúltera, depois que os seus acusadores foram embora: "Mulher, ninguém te condenou?" "Ninguém, Senhor." "Eu também não te condeno. E a partir de agora, não peques mais!". Cada um de nós, se examinar bem, perceberá que, ao lado dos muitos pecados que comete, há um diferente dos outros. Trata-se daquele pecado ao qual se é secretamente um pouco apegado, que se confessa, mas sem uma real vontade de dizer "chega!".

 Santo Agostinho, nas Confissões, nos descreve a sua luta para se libertar do pecado da sensualidade. Houve um momento em que rezava a Deus, dizendo: "Concede-me castidade e continência". Porém, uma voz acrescentava: "Não imediatamente, Senhor!".

Chegou o momento em que ele gritou para si mesmo: "Por que amanhã", amanhã? que em latim se diz "cras". Por que este corvo que diz "cras"? Por que não agora? Foi suficiente que dissesse este "chega!" para se sentir livre. Que se deve fazer concretamente?

Colocar-se por um instante na presença de Deus e dizer-Lhe: "Senhor, tu conheces bem a minha fragilidade. Confiando por isso unicamente na tua graça, eu te digo que, a partir de agora, quero dizer "chega" daquela satisfação, daquela liberdade, daquela amizade, daquele rancor, daquele subterfúgio financeiro, enfim, chega daquele pecado que eu e Tu conhecemos bem".

Venho para receber o teu perdão sacramental.
Você poderá talvez recair. Poderemos talvez recair mais tarde, mas para Deus algo mudou: a sua liberdade se aliou a Ele. Vocês estão juntos agora a lutar contra o mesmo inimigo. Você verá quanto é mais belo viver livre da escravidão do pecado, em paz com Deus e consigo mesmo!

 

Cardeal Cantalamessa

Fevereiro de 2024

A confissão pelo Papa Francisco

A confissão é um "sacramento da alegria", na verdade uma "festa", no Céu e na terra. Na terça-feira, 14 de setembro, no Estádio de Košice, era como se o Papa Francisco olhasse nos olhos de cada um dos jovens que o acolheram, para convidá-los a viver o Sacramento da Penitência de uma nova maneira. E o que o Sucessor de Pedro lhes disse foi um conforto não só para os presentes, mas para todos os que acompanharam aquele encontro pela televisão ou pela internet, ou apenas leram o discurso papal.

Não é o sacramento, pouco frequentado nestes dias, que mudou. O que Francisco propôs foi uma visão completamente diferente da confissão em comparação com a experiência de tantos cristãos e a um certo legado histórico.

Em primeiro lugar, o Papa indicou no sacramento "o remédio" para os momentos da vida em que "estamos para baixo". E à pergunta de uma jovem, Petra, que lhe perguntou como seus coetâneos poderiam "superar os obstáculos no caminho para a misericórdia de Deus", ele respondeu com outra pergunta: "Se eu lhes perguntar: o que vocês pensam quando vão se confessar? Estou quase certo da resposta: nos pecados. Mas os pecados são realmente o centro da confissão? Deus quer que você se aproxime dele pensando em você, nos seus pecados ou Nele?"

"A maneira cristã", disse Francisco dois dias antes, em Budapeste, "começa com um passo atrás, com o retirar-se do centro da vida para dar lugar a Deus. Este mesmo critério, esta mesma perspectiva aplicada à confissão pode provocar uma pequena-grande revolução copernicana na vida de cada um: no centro do Sacramento da Penitência não estou mais eu, humilhado com uma lista de pecados - talvez sempre os mesmos - para serem recontados com dificuldade ao sacerdote. No centro está o encontro com Deus que acolhe, abraça, perdoa e eleva.

"Não se vai à confissão", explicou o Papa aos jovens, "como pessoas castigadas que têm que se humilhar, mas como filhos que correm para receber o abraço do Pai. E o Pai nos levanta em cada situação, nos perdoa cada pecado. Ouçam bem isto: Deus sempre perdoa! Vocês entenderam? Deus sempre perdoa". Não se vai a um juiz para acertar contas, mas "a Jesus que me ama e me cura".

Francisco aconselhou os sacerdotes a "sentirem-se" no lugar de Deus: "Que se sintam no lugar de Deus Pai que sempre perdoa, abraça e acolhe. Damos a Deus o primeiro lugar na confissão. Se Deus, se Ele é o protagonista, tudo se torna belo e a confissão se torna o Sacramento da alegria. Sim, da alegria: não do medo e do julgamento, mas da alegria".

O novo olhar sobre o sacramento da penitência proposto pelo Papa pede para não permanecer prisioneiros da vergonha dos próprios pecados - vergonha que "é uma coisa boa" - mas a superá-la porque "Deus não se envergonha de você. Ele o ama bem ali, onde você tem vergonha de si mesmo. Ele o ama sempre". Para aqueles que ainda não conseguem se perdoar acreditando que nem mesmo Deus pode fazê-lo "porque eu sempre cairei nos mesmos pecados", Francisco diz: "Quando Deus se ofende? Quando você vai pedir-lhe perdão? Não, nunca. Deus sofre quando pensamos que Ele não pode nos perdoar, porque é como dizer a Ele: 'Você é fraco no amor'... Mas Deus se regozija em nos perdoar, toda vez. Quando ele nos levanta, ele acredita em nós como fez da primeira vez, não se desanima. Somos nós que nos desanimamos, Ele não. Ele não vê pecadores para rotular, mas filhos para amar. Ele não vê pessoas erradas, mas filhos amados; talvez feridos, e então Ele tem ainda mais compaixão e ternura. Toda vez que nos confessamos - nunca nos esqueçamos disso – há festa no céu. Que seja o mesmo na terra!" Da vergonha à festa, da humilhação à alegria. Não é o Papa Francisco, mas o Evangelho, onde se lê sobre o pai que espera ansiosamente o filho pecador, continuamente examinando o horizonte, e mesmo antes que ele tenha tempo de se humilhar, detalhando meticulosamente todos os seus pecados, Ele o abraça, o levanta e faz festa com ele e para ele.

 Papa Francisco

Penitência, por S. Josemaria Escrivá

Consideremos de novo, nesta Quaresma, que o cristão não pode ser superficial. Plenamente mergulhado no seu trabalho diário entre os demais homens, seus iguais, atarefado, ocupado, em tensão, o cristão tem que estar ao mesmo tempo totalmente mergulhado em Deus, porque é filho de Deus (...)

Tempo de penitência, portanto. Mas, como vimos, não é uma tarefa negativa. A Quaresma deve ser vivida com o espírito de filiação que Cristo nos comunicou e que palpita em nossa alma. O Senhor chama-nos para que nos aproximemos d'Ele: Sede imitadores de Deus, como filhos muito queridos, colaborando humildemente, mas fervorosamente, com o divino propósito de unir o que se quebrou, de salvar o que se perdeu, de ordenar o que o homem pecador desordenou, de reconduzir o que se extraviou, de restabelecer a divina concórdia em toda a criação.

Procuras tomar já as tuas resoluções de propósitos sinceros?
Pede ao Senhor que te ajude a contrariar-te por seu amor; a pôr em tudo, com naturalidade, o aroma purificador da mortificação; a gastar-te no seu serviço, sem espetáculo, silenciosamente, como se consome a lamparina que tremeluz junto do Tabernáculo. E para o caso de agora não te ocorrer como corresponder concretamente às solicitações divinas que te batem à porta do coração, escuta-me bem.

Penitência é o cumprimento exato do horário que marcaste, ainda que o corpo resista ou a mente pretenda evadir-se em sonhos quiméricos. Penitência é levantar-se na hora. E também não deixar para mais tarde, sem um motivo justificado, essa tarefa que te é mais difícil ou trabalhosa.

A penitência está em saberes compaginar todas as tuas obrigações - com Deus, com os outros e contigo próprio -, sendo exigente contigo de modo que consigas encontrar o tempo de que cada coisa necessita. És penitente quando te submetes amorosamente ao teu plano de oração, apesar de estares esgotado, sem vontade ou frio.

Penitência é tratar sempre com a máxima caridade os outros, começando pelos da tua própria casa.
É atender com a maior delicadeza os que sofrem, os doentes, os que padecem.
É responder com paciência aos maçantes e inoportunos.
É interromper ou modificar os programas pessoais, quando as circunstâncias - sobretudo os interesses bons e justos dos outros - assim o requerem.

A penitência consiste em suportar com bom humor as mil pequenas contrariedades da jornada; em não abandonares a tua ocupação, ainda que de momento te tenha passado o gosto com que a começaste; em comer com agradecimento o que nos servem, sem importunar ninguém com caprichos.

Penitência, para os pais e, em geral, para os que têm uma missão de governo ou educativa, é corrigir quando é preciso fazê-lo, de acordo com a natureza do erro e com as condições de quem necessita dessa ajuda, sem fazer caso de subjetivismos néscios e sentimentais.

O espírito de penitência leva a não nos apegarmos desordenadamente a esse bosquejo monumental de projetos futuros, em que já previmos quais serão os nossos traços e pinceladas mestras. Que alegria damos a Deus quando sabemos renunciar às nossas garatujas e broxadas de mestrinho, e permitimos que seja Ele a acrescentar os traços e as cores que mais lhe agradem!

 S. Josemaria Escrivá

Chegaram os dias da penitência!

Este é um tempo favorável para podermos procurar dentro de nós a vontade de Deus e aferirmos como vivemos a Fé que afirmamos professar.
Entremos dentro de nós e peçamos que a nossa consciência seja iluminada pelo Espírito Santo.
Não queiramos ser nós a “aconselhar” a nossa consciência, mas deixemos que seja ela, “livre das nossas certezas”, a aconselhar-nos, mostrando-nos o caminho da vontade de Deus.
Temos tantas certezas! Temos tantas convicções! Temos tanto convencimento de que nos conhecemos!
E afinal, caímos, voltamos a cair, procurando na nossa vontade a vontade de Deus.

Chegaram os dias da penitência!

Não a penitência como um castigo ou uma tristeza inabalável, mas a penitência que nos afirma que Deus está connosco e nos quer revelar em cada momento a sua vontade para a vida que nos deu.
Se nos vestimos de saco, se colocamos cinzas na cabeça, façamo-lo com o sorriso sereno, provocado pela tranquila alegria de sabermos que Ele já nos salvou.
Lembremo-nos sempre que a vontade de Deus é a nossa felicidade.

Chegaram os dias da penitência!

Não queiramos mudar tudo de uma só vez.

Não comecemos pelas faltas grandes, porque dessas temos nós consciência plena de que as devemos mudar.
Comecemos antes pelas mais pequenas, aquelas que nos perseguem todos os dias, aquelas que mais vezes repetimos na Confissão, aquelas em que caímos já tão rotineiramente, que delas só nos apercebemos quando chega o tempo do exame de consciência.

E lembremo-nos que sozinhos nada somos, sozinhos nada conseguimos, só com Ele, no amor do Pai, iluminados pelo Espírito Santo, em Igreja, conseguiremos mudar o que precisa ser mudado, primeiro em nós, e depois dando testemunho no dia a dia, nos outros também.

E se mudarmos o “pequeno”, então o “grande” será mudado também!

 Chegaram os dias da penitência!

 Louvado seja o Senhor!

Marinha Grande, 18 de Fevereiro de 2015

Joaquim Mexia Alves

A propósito das crianças pequenas na Missa.

“Deixai vir a mim as crianças” Mt 19, 14

Há toda uma leitura mais alargada acerca do que Jesus quis dizer com esta frase, mas a imagem fala por si mesma: a predilecção pelos pequenos e humildes e a certeza de que todos são bem vindos.

A questão do comportamento das crianças mais pequenas, bebés e miúdos e alguns mais graúdos, é tema recorrente. Aqui na Marinha Grande procuramos que todos se sintam bem e acolhidos, mesmo os “guinchões”. Reconhecendo eu que por vezes é difícil manter a concentração, que ninguém se sinta impedido de estar na Eucaristia. Temos repetido várias vezes.

Voltou a ser tema numa catequese, onde alguns pais manifestaram não só a “vergonha” e a dificuldade de manter os meninos quietos, mas também um certo desconforto por sentirem que estão a perturbar a assembleia.

Pessoalmente a mim, pároco, e ao vigário paroquial, incomodam os olhares de lado e de repreensão.

Há limites? Claro! Não esboçar uma tentativa mínima ou ignorar a situação nem sequer é educativo e pode ajudar a fazer crescer um ditadorzinho!

Partilhamos um texto que nos parece apropriado. Queremos pais participantes e que sintam que podem participar, mesmo e apesar das suas lutas.

Recordo um provérbio africano que diz que é preciso uma aldeia para educar uma criança, não será essa uma missão nobre da nossa comunidade?

Pe. Patrício Oliveira
Pe. Jorge Fernandes

Havia uma criança no banco da frente, e a pequena não parava quieta um instante sequer! Era Missa; e a frutuosa participação no Sacrifício de Cristo exige algumas disposições interiores de ordinário avessas à distração inevitavelmente provocada por uma criança irrequieta. Em poucas palavras, a gente precisa se concentrar pra rezar direito, e é difícil concentrar-se com uma criança chamando a sua atenção o tempo todo…

Lembrei-me de que “o problema” das crianças na Missa já fora abordado de um sem-número de maneiras. Há quem defenda que elas sejam simplesmente deixadas em casa. Há quem pugne pelo oferecimento de uma estrutura paroquial – uma salinha separada, a “acolhida das crianças” – para “tomar conta” dos pequenos enquanto os seus pais assistem à Missa. Há quem diga que os pais devem se impôr mesmo e fazer as crianças ficarem quietas, retirando-as do recinto sagrado se necessário for. Domingo, havia uma criança no banco da frente, e eu me peguei a pensar no assunto. E, curiosamente, a solução a que cheguei foi esta: é preciso deixar as crianças serem crianças. E deixar os pais serem pais.

A menina – era já um pouco grandinha, não sei, três anos… – olhava para tudo ao redor, com aquela curiosidade própria de quem tem um mundo inteiro a desbravar. Subia no banco. Descia do banco. Abraçava o pai. Segurava a mãe. Tinha uma voz estridente, de cujo volume as convenções sociais ainda não tivera tempo de aprender. Pegava o papel. Derrubava o papel. Ia de um lado para outro, para o braço de um e de outro. Olhava, sorria. Desinteressava-se. Falava. Ensaiava um choro. Um momento houve até em que, em pé no banco, começou a pisar forte e ritmadamente – com o insofismável fito de fazer barulho. (Neste instante, aliás, o pai a pegou no braço. E ela não fez escândalo. Em momento algum ela fez escândalo.)

Pela descrição, parece até que a igreja estava a ponto de vir abaixo; dir-se-ia um verdadeiro pandemônio instaurado no templo santo de Deus. Houve até um momento em que eu próprio olhei para a criança e me perguntei se não haveria algum fenômeno preternatural a explicar aquele incansável empenho infantil em roubar do Altar a atenção dos fiéis. Mas, na verdade, a impressão agora é ilusória, como o fora no decorrer da Missa. A criança não atrapalhava a celebração mais do que outras coisas com as quais a Igreja sempre conviveu – e é bom que conviva.

Li, há anos, em não me lembro agora qual historiador, uma descrição de uma provável Missa celebrada em um típico vilarejo medieval. Não havia os bancos que hoje nos acostumamos a encontrar, a fim de organizar os fiéis que se reúnem para a assistência do Santo Sacrifício; o espaço aberto da nave ocupava-se de maneira natural, orgânica, à medida que os católicos fossem chegando e na proporção do seu fervor religioso na ocasião. O povo também não se pejava de adentrar o templo do modo como se encontrasse; às vezes carregando um saco de frutas a vender na feira, ou dois patos adquiridos no caminho e que iriam servir de alimento à família. O ápice da Missa era – como ainda é – a Consagração; assim, no instante em que o sacerdote elevava a Hóstia Consagrada por cima de sua cabeça, todos se acotovelavam para, acima dos ombros uns dos outros, vislumbrar – por um instante fugaz que fosse – o Santíssimo Sacramento. E, imaginando as penas voando, o grasnar dos patos, a melancia espatifando-se no chão e um monte de gente se empurrando para ver melhor (que os outros) o altar… aquela criança no banco da frente da Missa de domingo passado parecia-me transmitir uma quietude elísia.

O quadro, dirão, é “pouco piedoso”. Ora, mas é claro que é pouco piedoso; é um quadro que retrata todas as mazelas e defeitos dos seres humanos de carne e osso para cuja salvação existe a Igreja! Mas não se trata sempre de pouco zelo; às vezes, há circunstâncias pessoais bem razoáveis a justificar certos comportamentos dos fiéis. E para as encontrar não é preciso retroceder a nenhum obscuro vilarejo medieval; basta pensar, por exemplo, nas missas celebradas em campanha. Ou alguém acha que em Iwo Jima não havia soldados fazendo a guarda, olhares apreensivos para todos os lados, tiroteios e ribombos de canhões ao fundo, essas coisas que costumam acontecer nas guerras?

Tampouco é preciso ir à guerra; vá-se a uma festa popular de maior monta. Aqui, em Recife, fui recentemente (como o disse) à de Nossa Senhora no Carmo. E havia crianças comendo, e gente mexendo no celular, e empurra-empurra na nave central (da qual, em talvez involuntária homenagem ao vilarejo medieval que referi acima, haviam retirado os bancos), e guardas-chuvas e capas pingando (sim, chovia lá fora), e pessoas chegando e saindo o tempo inteiro. Perto disso, repita-se mais uma vez, a criança no banco da frente da Missa de domingo passado transparecia a placidez de um mosteiro cartuxo.

O ponto, em suma, é o seguinte: não nos deve surpreender que a assistência à Missa revista-se dos elementos naturais da vida social. Mais até: quanto mais fortes forem esses elementos, mais isso significa que a religião está entranhada no dia-a-dia das pessoas, mais as pessoas a vêem com familiaridade. Atenção, que não se está aqui falando nada de Liturgia! A Liturgia é para ser sempre impecável, é evidente, como convém ser o culto prestado ao Deus Todo-Poderoso. Mas a forma como as pessoas assistem a este culto pode, sim, adquirir os rasgos de espontaneidade não-institucional que sejam socialmente aceitáveis e razoavelmente justificáveis. E é até bonito que assim se faça; chega a ser um testemunho da vitalidade do Evangelho, ao qual se curvam as necessidades sociais. Falo, por exemplo, de pessoas entrando e saindo da igreja durante a Missa, aproveitando o intervalo do horário de trabalho para assistir, se não a celebração inteira, ao menos o pedaço que conseguem. Falo de militares de serviço assistindo à missa de farda camuflada, quepe às costas. Falo de doentes tossindo. E, claro, falo de mães embalando seus filhos, ou retirando-se para lhes trocar as fraldas, e falo de crianças correndo e gritando.

Dir-me-ão que essas coisas são muito diferentes, e que nada tem a ver uma guerra com um feirante, ou com um pedreiro sujo de cimento, ou com uma criança mal-comportada. Eu digo que todas essas coisas têm muito mais em comum entre si do que parece à primeira vista: são, todas elas, exemplos de seres humanos tentando conciliar os seus deveres de estado com a prática religiosa. Assim como o soldado deve combater, e isso talvez lhe exija prestar atenção nos arredores do acampamento mesmo durante a celebração da Missa, assim o trabalhador deve prover ao sustento da sua família – e isso talvez lhe exija levar à igreja os seus instrumentos de trabalho. Isto é um sinal de que a sociedade anda sadia e está ordenada; é um indício de que, apesar de tudo, as coisas estão indo bem.

Mas um soldado não é a sua patente e, um feirante ou pedreiro, não é o seu comércio ou sua construção civil.Uma mãe, contudo, é indissociável da sua maternidade. O soldado tem o seu dia de folga, onde ele não exerce o serviço de militar; um pai, contudo, não dispõe de um instante sequer onde esteja dispensado de seus serviços paternos. Nem aos domingos. Nem na igreja.

Uma família com crianças é uma campanha militar permanente. E se deixamos sem maiores olhares de censura os soldados (ou os policiais, ou os médicos, ou os bombeiros) assistirem às nossas missas, mesmo que estejam fardados, mesmo que o rádio que levam à cintura possa eventualmente tocar, mesmo que precisem sair às pressas da celebração; se os deixamos e, ainda, sentimo-nos gratos porque eles protegem as pessoas, salvam vidas, cuidam de nós, e é bom tê-los por perto; se, até mesmo!, olhamos com admiração para essas pessoas que, no meio do serviço, fazem malabarismos para conciliar os seus deveres com algum tempo de oração e de agradecimento a Deus; por qual razão censuraríamos as famílias que vão à missa fardadas com bolsas e fraudas, e carrinhos de bebê, e mamadeiras?, e por qual motivo não agradeceríamos àqueles que, mesmo durante a Missa, não descuidam do cuidado dos seus filhos, que outra coisa não é que o cuidado com o nosso futuro?, e por quê, em suma, não olhamos com admiração e reconhecimento para estas pessoas que, sem descuidar de seus deveres, mesmo a serviço, desdobram-se para dedicar um pouco de tempo à vida de oração e aos seus deveres públicos para com Deus?

A menina no banco da frente da Igreja era uma criança. E isso significava três coisas: primeiro, que ainda há crianças no mundo, graças a Deus; segundo, que os seus pais não as deixam de lado para estar na Igreja; e, terceiro, que eles tampouco deixavam a Igreja para cuidar de suas crianças. Foi o que eu percebi no domingo passado; e, perto disso, qualquer distração que a sua presença pudesse provocar era de pouca monta. Que Deus nos conceda igrejas repletas de crianças! Conviver com elas, afinal de contas, é um excelente sinal de que as coisas – graças a Deus! – ainda andam bem no mundo.

De onde me é dado?

A expressão deste título, que nos evoca de imediato a figura de Santa Isabel, esposa de Zacarias, poderia muito bem ser dita: “Como é que é possível?…” ou, “não sou merecedora…” Poderia também dizer-se, de forma mais prosaica, “Não consigo acreditar no que estou a ver!…”

Aquela expressão traduz o espanto, a surpresa e a admiração de Isabel por estar a viver um momento que nunca esperava viesse a acontecer e de que tem a percepção nítida de ser único e transcendente. Não o consegue abarcar totalmente, mas fá-la experimentar uma alegria superior à que tivera 6 meses antes, ao sentir-se grávida na sua velhice, alegria que ela certamente julgava não ser possível ultrapassar.

O espanto, a surpresa e a admiração serão igualmente os sentimentos manifestados mais tarde por João Baptista, gerado por Isabel, quando vê aproximar-se Jesus, gerado por Maria, que lhe pede para realizar n’Ele o gesto do arrependimento e da conversão que fazia com as multidões. Surpreendido e admirado, procurando evitar que isso acontecesse, afirma “Donde me é dado?…” com a utilização de outras palavras: “Eu é que preciso de ser baptizado por ti, e tu vens a mim?”

O espanto, a surpresa e a admiração estarão igualmente presentes nas palavras de Zaqueu quando Jesus vai ter com ele e lhe diz que quer entrar e ficar em sua casa. Esses sentimentos de Zaqueu acontecem porque se acha indigno e certamente ter-se-á questionado: “Donde me é dado?…”

Estes episódios, como todos os outros narrados no Evangelho, têm traços comuns entre eles.

É Jesus quem vai ao encontro das pessoas, directa ou indirectamente, causando perplexidade em quem O acolhe, associada a um sentimento de não se ser digno e que causa uma alegria inimaginável antes.

Existe em todas as pessoas de quem Jesus se aproxima uma disponibilidade interior para O acolher e o desejo de serem por Ele encontrados e acolhidos.

Maria, levando Jesus consigo, vai ao encontro de Isabel e esta, com João presente no seu seio, exulta de alegria e, pela acção do Espírito Santo, pressente os sinais da presença de Deus, não se achando merecedora.

Jesus vai ao encontro de João e este, por inspiração interior do Espírito Santo, manifesta a sua pequenez face ao Divino Mestre, não se achando merecedor.

Zaqueu, sedento de Deus para a sua vida, disponível para a acção do Espírito Santo, manifesta a sua alegria no compromisso de acções concretas que irá fazer, por causa do desejo manifestado por Jesus de ser parte da sua vida.
Existem em todos os episódios dois movimentos: o de Jesus e o de cada uma das pessoas.
Sabemos que Jesus vem sempre ao nosso encontro.

Então, cada um de nós é convidado também a ser uma dessas pessoas que o Evangelho relata.
A disponibilidade interior, a sede de Deus, a procura de sentido para a existência, são atitudes que colocam cada um de nós num processo constante de Advento. Um advento pessoal que espera, que anseia, que acolhe e exulta quando encontra o Senhor.
A consciência pessoal que nos diz “Senhor, eu não sou digno que entreis na minha morada!”, a abertura contínua à acção do Espírito Santo, a percepção de que temos a possibilidade de um encontro com Jesus em qualquer ocasião, levam-nos viver num estado contínuo de Advento, cheios de esperança, de expectativa, sedentos de Deus.
A alegria do encontro com o Senhor, aquela alegria interior e profunda que advém do encontro com o transcendente, com o divino, com o Verbo incarnado é indissociável da esperança, da expectativa, da sede de Deus que devemos alimentar e que nos levará a exclamar também: “Donde me é dado?…”

Fernando Brites

CONTO DE NATAL 2023 

Sentada no cadeirão do lar onde passava os longos dias da sua velhice, sonhava acordada vendo os seus filhos entrarem pela porta daquela sala para lhe darem um beijo de Boas Festas pelo Natal.

Olhava para as suas companheiras e companheiros pensando que alguns deles, coitados, não teriam filhos que os viessem beijar e desejar bom Natal.

Verdade seja dita, pensou ela, que há muito tempo os seus filhos não a vinham visitar, mas o seu coração de mãe, cheio de amor, ia encontrando desculpas para eles não a visitarem.

Coitadas das suas “meninas” e “meninos”, com certeza atarefados nas suas vidas de trabalho, de família, já com filhas e filhos a criar e que, por isso, não teriam tempo para a visitar.

Sorriu ao lembrar-se das suas netas e netos que há tanto tempo já não via e até lhe parecia, (a sua memória já não era muito fidedigna), que talvez houvesse alguns que ainda não conhecia.

Os seus olhos doces encheram-se de lágrimas suaves quando se lembrou da sua antiga casa e do Natal, ainda com o seu homem e aquelas seis filhas e filhos que Deus lhes tinha dado ao redor da mesa, numa algazarra alegre e bem disposta.

Que saudades lhe vieram ao coração ao lembrar-se de todos esses Natais onde se percebia bem como a família ia crescendo sem parar.

Fechou os olhos e numa prece a Deus, pediu por todos eles e também, (embora com algum receio que estivesse a pedir demais), que o Menino Jesus lhe concedesse a alegria de viver esses Natais tão realmente quanto possível.

Regressou à realidade do lar e da sala onde se encontrava, respondeu qualquer coisa, sem pensar, a uma qualquer pergunta da companheira do lado, olhou para o grande calendário pendurado na parede, (também não era preciso ser tão grande, até parece que ali estava para contarem os dias que lhes faltavam para partir definitivamente!!!), e viu que era dia 24 de Dezembro pelo que, pensou ela quase num sonho, ainda havia tempo para a família a vir visitar.

A tarde chegava ao fim e ela, resignadamente, olhou para o crucifixo pendurado na parede e para o pequeno presépio colocado numa mesa de canto, e rezou baixinho:

Obrigado Jesus porque quiseste nascer para nós, quiseste ser igual a nós e até morrer por nós, para nos salvar.

Olha por todos os meus e dá-lhes tanta felicidade como me deste a mim, até mais, eu Te peço, e não deixes que nunca se sintam sós.

Perdoa por me sentir nestes momentos tão só, tão desamparada, mas olha, Jesus, coloco estes momentos na Tua Cruz, dou-tos como presentes no Teu Presépio, oferecendo-os pela conversão, felicidade e salvação de todos os meus.

Aquela oração trouxe uma paz e uma alegria serena ao seu coração e ela sorrindo, pensou: Sou tão feliz por ter Jesus comigo!

Foi nessa altura que a porta da sala se abriu e o seu filho mais velho entrou e chegando a ela beijou-a com toda a ternura dizendo-lhe: Anda, mãe, a empregada do lar já está a fazer-te uma pequena mala para vires jantar e passar a noite de Natal a nossa casa!

Ela nem sabia o que dizer e as lágrimas inundaram-lhe a cara.

À porta de casa do seu filho, depois de sair do carro, beijou-o novamente e de mão dada com ele entrou em sua casa, que afinal era a mesma casa que tinha sido sua.

Ao chegar à sala da casa, ficou completamente rendida à alegria, à saudade, a algo tão inexplicável que parecia lhe “rebentava” qualquer coisa no seu coração.

Ali, naquela sala de tantas memórias, estavam todas as suas filhas e filhos com as suas famílias, que a rodearam e cobriram de beijos e abraços.

Ia jurar que a um canto da sala estava o seu querido marido sorrindo para ela de felicidade.

Fechou os olhos e rezou: Obrigado Jesus, porque me ouviste e agora me fazes viver novamente o Natal de sempre!

 

Marinha Grande, 18 de Dezembro de 2023

Joaquim Mexia Alves