“Quero celebrar a Páscoa em tua casa” (Mt 26, 18). É o convite e a promessa que Jesus faz a cada cristão que se põe a caminho no percurso da Quaresma, rico de espiritualidade e de promessas de vida nova. O itinerário é paradoxal: das cinzas... ao fogo. E não o contrário!
Começa com a imposição das cinzas. É um símbolo austero da fragilidade de todos os humanos, da nossa vida efémera. Com este rito, o cristão reconhece a necessidade de se abrir a Deus que o faz renascer das cinzas através do fogo da Páscoa.
O fogo que o pode reanimar só pode vir do alto pela graça de Deus. É o fogo da Vigília Pascal. A cinza não é removida, mas é-nos posta sobre a cabeça para que, transformada por Deus, se torne fogo que arde no coração, purifica, dá calor e vida.
Das cinzas até ao fogo estende-se o caminho do discípulo de Jesus que se abre à conversão. O fogo da Vigília Pascal – Cristo Ressuscitado – ilumina este caminho. É a bondade misericordiosa de Deus que vem visitar a humanidade para renovar cada homem, dar-lhe um coração novo, vida nova, nova esperança.
Esta simbólica pascal das cinzas e do fogo ajuda-nos a viver neste momento histórico. De facto, após longo período de fragilidades, feridas, incertezas, luto e medos provocados pela pandemia, paira no mundo uma ameaça de guerra. É necessário, por isso, despertar do cansaço espiritual, da apatia, do desalento e do desânimo. Tudo isto pode levar ao fatalismo, ao sentido de impotência face à realidade dura, à indiferença e ao desinteresse em relação aos outros e aos desafios a enfrentar para um mundo melhor.
Não nos cansemos de fazer o bem
Neste panorama, é de premente atualidade a mensagem do Papa Francisco para a Quaresma deste ano com o título de uma passagem da carta aos Gálatas “Não nos cansemos de fazer o bem...Enquanto temos tempo, pratiquemos o bem para com todos” (6, 9-10). É um mote belo e inspirador para a nossa conversão.
Perante a tentação de ceder ao cansaço, ao egoísmo individualista e à indiferença à vista dos sofrimentos alheios, o Papa exorta a pôr toda a confiança no Senhor: “Com efeito, mesmo os melhores recursos conhecem limitações: «Até os adolescentes se cansam, se afadigam, e os jovens tropeçam e vacilam» (Is 40, 30). Deus, porém, «dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco. (…) Aqueles que confiam no Senhor renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 29.31). A Quaresma chama-nos a repor a nossa fé e esperança no Senhor (cf. 1 Ped 1, 21), pois só com o olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado (cf. Heb 12, 2) é que podemos acolher a exortação do Apóstolo: «Não nos cansemos de fazer o bem” (Gal 6,9).
De seguida, o Papa indica os meios clássicos e sempre atuais do caminho quaresmal para fazer o bem: a oração, o jejum e a partilha, convidando cada um a concretizá-los na sua vida.
Não nos cansemos de rezar
A Quaresma é tempo de cuidar da vida interior. Em primeiro lugar, da nossa relação pessoal e íntima com Deus Pai misericordioso através da oração mais intensa e assídua. “Jesus ensinou-nos que é necessário «orar sempre, sem desfalecer» (Lc 18, 1). Precisamos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa... A fé não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a Deus em Cristo”.
A oração é ir à fonte de todo o amor, onde recebemos a luz, a coragem e a força de amar, de vencer o cansaço e resistir ao desencanto neste tempo atribulado.
Para a prática da oração, além de outras formas ao gosto de cada um e das famílias, propomos e recomendamos novamente a todo o povo de Deus o retiro popular, segundo o método da leitura orante da Palavra de Deus. Para isso, está disponível o opúsculo “Juntos a caminho com a Palavra, a Eucaristia e o Serviço”. É um meio maravilhoso e importantíssimo para ler e meditar os Evangelhos, compreender o grande dom, o mistério admirável do infinito amor que Jesus nos comunica com a sua presença real na celebração da Eucaristia. Além disso é um modo de aprender a rezar a vida com o Evangelho e vice-versa.
Recomendamos também a iniciativa “24 horas para o Senhor”, a concretizar nos dias 25 e 26 de março, sexta-feira e sábado, ao cuidado das paróquias, vigararias e outras comunidades. Aproveitemos esta oportunidade para organizar momentos de oração e adoração eucarística e para celebrar o sacramento da Reconciliação.
Não nos cansemos de jejuar
O jejum não está fora de moda. Do ponto de vista físico, é praticado por motivos de saúde ou de estética. Numa sociedade de consumismo devorador não é mera questão de se privar de carne ou de comida, mas estilo de vida sóbrio. Esta sobriedade tem uma riqueza de significado espiritual. Ajuda ao autodomínio das inclinações para o mal. Desperta-nos, torna-nos mais atentos e abertos a Deus e ao próximo. É também um meio de partilhar, privando-me do supérfluo.
O Papa aplica o jejum, de modo concreto, à “dependência dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propício para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral feita de «encontros reais» face a face”.
Respondamos generosamente ao recente apelo do Papa Francisco a favor da paz na Ucrânia: “E agora gostaria de apelar a todos, crentes e não-crentes. Jesus ensinou-nos que à diabólica insensatez da violência se responde com as armas de Deus, com a oração e o jejum. Convido todos a fazer no próximo dia 2 de março, quarta-feira de Cinzas, um Dia de jejum pela paz. Encorajo de modo especial os crentes a fim de que naquele dia se dediquem intensamente à oração e ao jejum. Que a Rainha da paz preserve o mundo da loucura da guerra”.
Não nos cansemos de partilhar
A Quaresma chama-nos e educa-nos a viver a beleza e a riqueza da caridade como relação fraterna, doação, partilha e serviço a quem necessita de ajuda. São muito belas, expressivas e concretas as sugestões do Santo Padre: “Se é verdade que toda a nossa vida é tempo para semear o bem, aproveitemos de modo particular esta Quaresma para cuidar de quem está próximo de nós, para nos aproximarmos dos irmãos e irmãs que se encontram feridos na margem da estrada da vida (cf. Lc 10, 25-37). A Quaresma é tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessidade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar, quem sofre a solidão. Acolhamos o apelo a praticar o bem para com todos, reservando tempo para amar os mais pequenos e indefesos, os abandonados e desprezados, os discriminados e marginalizados”.
Um sinal neste sentido é a chamada renúncia quaresmal. A coleta desta renúncia na nossa diocese será canalizada para a Diocese de Tete, em Moçambique, cujo bispo, D. Diamantino Antunes, é missionário da Consolata e natural de Albergaria dos Doze. É uma diocese pobre, carente de recursos humanos e materiais para a obra de evangelização.
Deseja aplicar as ofertas na reabilitação de uma escola secundária (Boroma), que vai beneficiar 700 alunos. Demos, pois, um testemunho forte de generosidade na partilha para dar uma escola àqueles alunos.
Não nos cansemos de caminhar
Um exercício espiritual muito útil para todos nós será a peregrinação diocesana a Fátima, no dia 3 de abril, 5º domingo da Quaresma. Deixemo-nos tocar, envolver e mobilizar pelo lema do cântico que foi o hino do IV sínodo diocesano: “Povo de Deus, Igreja santa, bendiz o teu Senhor”. A Virgem Maria, nossa mãe, espera-nos no seu santuário, para nos acolher com a sua ternura, nos animar e conduzir a seu Filho, que nos reúne à volta do altar e nos alimenta com a Palavra de Deus e a comunhão do seu Corpo e do seu Sangue. Levamos no coração e nos lábios a prece pelos bons frutos do processo sinodal em toda a Igreja e pela paz no mundo, especialmente onde ela é mais necessária. Estaremos também em sintonia com os jovens e a sua e nossa preparação para a grande Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, em 2023. Tomamos como exemplo inspirador os santos Pastorinhos, com a sua oração incessante pela paz, a prática da adoração e do grande amor a Jesus escondido, no Santíssimo Sacramento.
Animem-se e ajudem-se uns aos outros para se porem a caminho e nos congregarmos em grande número no Santuário de Fátima.
A todos os diocesanos desejo Santa Quaresma e Feliz e Alegre Páscoa de Ressurreição!
Leiria, 24 de fevereiro de 2022.
† Cardeal António Marto, Administrador Apostólico de Leiria-Fátima