Mensagem para o dia dos namorados

Comissão Episcopal do Laicado e Família

  1. Em termos cristãos e eclesiais, qualquer dinâmica pastoral ou mensagem pastoral digna deste nome tem de ter sempre como trampolim a Palavra de Deus recolhida na Escritura Santa, que traz até nós o testemunhorendilhado da mão de Deus na nossa vida, nas nossas mãos, no nosso rosto, no nosso coração, no nosso sangue, na nossa cultura, na nossa linguagem, no nosso quotidiano.

  2. É assim que chega até nós a atestação de que «Deus é amor» (1 João 4,8 e 16) e «nos amou primeiro» (1 João 4,19). Considerando o mundo cultural de Platão e Aristóteles, dizer que Deus ama é entrar no domínio do absurdo, pois, segundo este tipo de pensamento, Deus pode ser amado, mas não amar. E dizer agora que Deus ama primeiro, é afirmar que Deus ama gratuitamente, com um amor gratuito e descensional, o que significa ainda que a razão do amor de Deus reside em Deus, e não naqueles sobre quem recai o seu amor. Entenda-se semelhante paradoxo: o infinito caudal do amor que há em Deus, e de Deus brota, é sem retorno, não existe em ordem à sua autorrealização ou autossatisfação mediante a escolha dos destinatários desse amor entre os mais belos, os mais ricos, os mais amáveis (que é o horizonte em que o nosso mundo se movimenta), mas procura a felicidade de todos, sobretudo dos mais pobres, necessitados e fracos, e alarga-se aos estrangeiros e inimigos.

  3. Se é assim, se «Deus é amor» (1 João 4,8 e 16), e «nos amou primeiro» (1 João 4,19), a toada do amor que há em nós «vem de Deus» (1 João 4,7), e «nós amamos, porque Deus nos amou primeiro» (1 João 4,19). Então, o amor que está aqui, o amor que está aí, o amor que está em mim, o amor que está em ti, o amor que está em nós, «vem de Deus» (1 João 4,7), e «quem ama nasceu de Deus» (1 João 4,7) e «de Deus foi gerado» (João 1,13). Deus amou-nos primeiro, ama-nos e continua a amar-nos sempre primeiro com amor-perfeito, isto é, amor preveniente, concomitante, fiel, consequente, permanente. Ama-nos a nós, que estamos aqui, e foi assim que nós começámos a amar. Se não tivéssemos sido amados primeiro, e não tivéssemos recebido o testemunho do amor, não teríamos começado a amar, e nem sequer estaríamos aqui, porque «quem não ama, permanece na morte» (1 João 3,14). Portanto, quem não ama vai em sentido contrário, ou em sentido nenhum, sem sentido, atraído, fascinado e seduzido pela morte (cf. Sabedoria 1,16; 15,6), escolhendo a morte em detrimento da vida (cf. Deuteronómio 30,19). Significa isto que a morte a que aqui se refere a Escritura Santa não é apenas o termo da vida biológica ou psicobiológica, mas aquilo que, desde o começo, impede de nascer para a vida verdadeira e para o amor. E o que é que te impede de nascer para a vida verdadeira e para o amor? É seguramente o que te impede de amar, de sair de ti, da tua prisão interior, cela interior, autossuficiência, autorreferência, tu, encadeado pelas leis da natureza, ao mesmo tempo dono e escravo de ti mesmo, pura idolatria, opressão maior do que a do Egito, que também impedia de nascer (Êxodo 1,16.22).

  4. A tartaruga acaba de deixar o seu esconderijo para um passeio noturno. O sapo vê-a sair de casa àquela hora, e adverte-a: «A esta hora não é muito aconselhável sair, tartaruga». Mas a tartaruga continua, e, arriscando um passo mais longo, vê-se virada de patas para o ar, sobre a sua própria couraça. O sapo exclama: «Eu bem te avisei, tartaruga; é uma imprudência sair a esta hora; morrerás aí!». «Bem sei», respondeu a tartaruga com um olhar entre a malícia e a delícia; «Bem sei, mas é a primeira vez que estou a ver o céu estrelado!». A tartaruga ensina que não nos podemos contentar em viver mais ou menos tranquilamente com a cabeça enterrada na areia do céu ou da terra.

  5. Sair de casa como a tartaruga, extasiar-se e desviar-se do caminho como Moisés para ver a visão grande e nova daquela sarça que ardia, mas não se consumia (Êxodo 3,2-3), ouvir a voz daquela chama que chama (Êxodo 3,4)! Aí está a maravilha que nos excede, que nos acende os olhos e o coração. Por isso, cantamos; por isso, contamos; por isso, repetimos e trauteamos, não por monotonia, nem por mera pedagogia, mas porque a maravilha reclama a poesia. Bem sabemos, de resto, que a humanidade não está destinada a morrer por falta de conhecimento, mas por falta de assombro e de maravilha. O mundo que atravessamos parece todo escuro, desencantado, sem Deus e sem profetas, sem amor, sem pais nem mães, filhos e irmãos, sem namorados. Só com armas e soldados!

  6. É preciso urgentemente trazer de volta a Palavra de Deus: «Tu és bela, minha amada,/ terrível como um exército em ordem de batalha» (Cântico dos Cânticos 6,4), que não nos deixa na presença de um amor banal, de plástico, de bolso, enlatado, mas de um amor que faz estremecer e implica o risco de morrer. O amor verdadeiro é agónico. Implica luta, porque implica decisões a todo o momento. Quando o amor não é agónico, então é egoísta. E, sintomaticamente, no mundo bíblico, a nascente do mal não reside na paixão, no coração que bate forte, mas no coração duro, empedernido, empedrado, esclerosado, um «coração de pedra», oxímoro vertiginoso que o profeta Ezequiel usou para classificar o coração empedernido e embotado de Israel (Ezequiel 36,26).

  7. Habitados por um coração de pedra! Alles in Ordnung [«tudo em ordem»] pode dizer-se apenas das lápides no cemitério! Se o matrimónio é indissolúvel, não é porque a lei de Deus proíba de o romper, mas porque o amor é fiel eternamente. Amar não é só estar apaixonado. Estar apaixonado não significa necessariamente amar. Estar apaixonado é um estado; amar é um ato. Sofre-se um estado; decide-se um ato. É, por isso, que o Deus da Escritura manda amar. Se amar fosse simplesmente apaixonar-se, tal mandamento seria um absurdo, pois ninguém pode exigir a alguém que se apaixone. Amar é uma sucessão de atos em cadeia: uma guerra, portanto. Não é por acaso que agápê (amor) e agôn (luta) podem ter a mesma etimologia. Paradoxo do amor, que é uma luta, a luta do amor, do amor novo, que não é contra ninguém, mas a favor de todos: o amor faz-te feliz, matando-te! Quanto mais amas, lutas, e te matas a amar, mais te encontras: «Quem quiser salvar a sua vida, perdê-la-á; ao contrário, quem perder a sua vida por causa de mim, salvá-la-á» (Lucas 9,24). Aí está o verdadeiro ícone do amor, Jesus Cristo, que não se salvou a si mesmo para me salvar a mim e a ti.

  8. Atravessamos hoje uma cultura solipsista e narcisista, que traz consigo, como obsessão dominante, viver cada um no seu naco de tempo e para si mesmo, descurando quer as gerações precedentes quer as seguintes, verificando-se assim uma acentuada perda de sentido de integração numa sucessão de gerações, numa família, numa comunidade, numa Igreja, valorizando-se em vez disso cada vez mais o sacrossanto direito de cada um à sua própria realização pessoal, sem implicar compromissos. Na verdade, vendo bem, estamos rodeados de homens e mulheres que se recusam a tornar-se adultos, e, por isso, negligenciam a tarefa mais importante de um adulto, que é preparar a nova geração para poder assumir o seu lugar no mundo.

  9. Sede felizes, jovens enamorados! Acolhei o amor de Deus, e, no meio de tantas guerras, empenhai-vos vós na guerra do amor!

«Não é conveniente que o homem esteja só».Cuidar do doente, cuidando das relações

MENSAGEM DE SUA SANTIDADE PAPA FRANCISCO
PARA O XXXII DIA MUNDIAL DO DOENTE
(11 de fevereiro de 2024)

 «Não é conveniente que o homem esteja só» (Gn 2,18). Desde o início, Deus, que é amor, criou o ser humano para a comunhão, inscrevendo no seu íntimo a dimensão das relações. Assim a nossa vida, plasmada à imagem da Trindade, é chamada a realizar-se plenamente no dinamismo das relações, da amizade e do amor mútuo. Fomos criados para estar juntos, não sozinhos. E precisamente porque este projeto de comunhão está inscrito tão profundamente no coração humano, a experiência do abandono e da solidão atemoriza-nos e olhamo-la como dolorosa e até desumana. E isto agrava-se ainda mais no tempo da fragilidade, da incerteza e da insegurança, causadas muitas vezes pelo aparecimento dalguma doença grave.

Penso, por exemplo, em todos aqueles que permaneceram terrivelmente sós durante a pandemia de Covid-19: pacientes que não podiam receber visitas, mas também enfermeiros, médicos e pessoal auxiliar, todos sobrecarregados de trabalho e confinados em repartições isoladas. E não esqueçamos quantos tiveram de enfrentar sozinhos a hora da morte, assistidos pelos profissionais de saúde, mas longe das suas famílias.

Ao mesmo tempo associo-me, pesaroso, à condição de sofrimento e solidão de quantos, por causa da guerra e suas trágicas consequências, se encontram sem apoio nem assistência: a guerra é a mais terrível das doenças sociais e as pessoas mais frágeis pagam-lhe o preço mais alto.

Contudo, é preciso assinalar que, mesmo nos países que gozam da paz e de maiores recursos, o tempo da velhice e da doença é vivido frequentemente na solidão e, por vezes, até no abandono. Esta triste realidade é consequência sobretudo da cultura do individualismo, que exalta a produção a todo o custo e cultiva o mito da eficiência, tornando-se indiferente e até implacável quando as pessoas já não têm as forças necessárias para lhe seguir o passo. Torna-se então cultura do descarte, na qual «as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar, especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os nascituros) ou “já não servem” (como os idosos)» (Francisco, Carta enc. Fratelli tutti, 18). Esta lógica permeia também, infelizmente, certas opções políticas, que não conseguem colocar no centro a dignidade da pessoa humana com as suas carências e nem sempre proporcionam as estratégias e recursos necessários para garantir a todo o ser humano o direito fundamental à saúde e o acesso aos cuidados médicos. Ao mesmo tempo, o abandono das pessoas frágeis e a sua solidão acabam favorecidos ainda pela redução dos cuidados médicos apenas aos serviços de saúde, sem serem sapientemente acompanhados por uma «aliança terapêutica» entre médico, paciente e familiar.

Faz-nos bem voltar a ouvir esta frase bíblica: «não é conveniente que o homem esteja só». É pronunciada por Deus ao início da criação, revelando-nos assim o significado profundo do seu projeto para a humanidade, mas ao mesmo tempo também a ferida mortal do pecado, que se introduz gerando suspeitas, fraturas, divisões e consequente isolamento. Este atinge a pessoa em todas as suas relações: com Deus, consigo mesma, com o outro, com a criação. Tal isolamento faz-nos perder o significado da existência, tira-nos a alegria do amor e faz-nos provar uma sensação opressiva de solidão nas sucessivas passagens cruciais da vida.

Irmãos e irmãs, o primeiro cuidado de que necessitamos na doença é uma proximidade cheia de compaixão e ternura. Por isso, cuidar do doente significa, antes de mais nada, cuidar das suas relações, de todas as suas relações: com Deus, com os outros – familiares, amigos, profissionais de saúde –, com a criação, consigo mesmo. É possível? Sim, é possível; e todos somos chamados a empenhar-nos para que tal aconteça. Olhemos para o ícone do Bom Samaritano (cf. Lc 10,25-37), contemplemos a sua capacidade de parar e aproximar-se, a ternura com que trata as feridas do irmão que sofre.

Recordemos esta verdade central da nossa vida: viemos ao mundo porque alguém nos acolheu, somos feitos para o amor, somos chamados à comunhão e à fraternidade. Esta dimensão do nosso ser sustém-nos sobretudo no tempo da doença e da fragilidade, e é a primeira terapia que todos, juntos, devemos adotar para curar as doenças da sociedade em que vivemos.

A vós que vos encontrais na doença, passageira ou crónica, quero dizer-vos: Não tenhais vergonha do vosso desejo de proximidade e ternura. Não o escondais e nunca penseis que sois um peso para os outros. A condição dos doentes convida-nos a todos a abrandar os ritmos exasperados em que estamos imersos e a reentrar em nós mesmos.

Nesta mudança de época que vivemos, especialmente nós, cristãos, somos chamados a adotar o olhar compassivo de Jesus. Cuidemos de quem sofre e está sozinho, porventura marginalizado e descartado. Com o amor mútuo que Cristo Senhor nos oferece na oração, especialmente na Eucaristia, tratemos das feridas da solidão e do isolamento. E deste modo cooperamos para contrastar a cultura do individualismo, da indiferença, do descarte e fazer crescer a cultura da ternura e da compaixão.

Os doentes, os frágeis, os pobres estão no coração da Igreja e devem estar também no centro das nossas solicitudes humanas e cuidados pastorais. Não o esqueçamos! E confiemo-nos a Maria Santíssima, Saúde dos Enfermos, pedindo-Lhe que interceda por nós e nos ajude a ser artífices de proximidade e de relações fraternas.

 

Roma – São João de Latrão, 10 de janeiro de 2024.

FRANCISCO

Através do deserto, Deus guia-nos para a liberdade

MENSAGEM DO PAPA FRANCISCO
PARA A QUARESMA DE 2024

 Queridos irmãos e irmãs!

Quando o nosso Deus Se revela, comunica liberdade: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). Assim inicia o Decálogo dado a Moisés no Monte Sinai. O povo sabe bem de que êxodo Deus está a falar: traz ainda gravada na sua carne a experiência da escravidão. Recebe as «dez palavras» no deserto como caminho de liberdade. Nós chamamos-lhes «mandamentos», fazendo ressaltar a força amorosa com que Deus educa o seu povo; mas, de facto, a chamada para a liberdade constitui um vigoroso apelo. Não se reduz a um mero acontecimento, mas amadurece ao longo dum caminho. Como Israel no deserto tinha ainda dentro de si o Egito (vemo-lo muitas vezes lamentar a falta do passado e murmurar contra o céu e contra Moisés), também hoje o povo de Deus traz dentro de si vínculos opressivos que deve optar por abandonar. Damo-nos conta disto, quando nos falta a esperança e vagueamos na vida como em terra desolada, sem uma terra prometida para a qual tendermos juntos. A Quaresma é o tempo de graça em que o deserto volta a ser – como anuncia o profeta Oseias – o lugar do primeiro amor (cf. Os 2, 16-17). Deus educa o seu povo, para que saia das suas escravidões e experimente a passagem da morte à vida. Como um esposo, atrai-nos novamente a Si e sussurra ao nosso coração palavras de amor.

O êxodo da escravidão para a liberdade não é um caminho abstrato. A fim de ser concreta também a nossa Quaresma, o primeiro passo é querer ver a realidade. Quando o Senhor, da sarça ardente, atraiu Moisés e lhe falou, revelou-Se logo como um Deus que vê e sobretudo escuta: «Eu bem vi a opressão do meu povo que está no Egito, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores; conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar das mãos dos egípcios e de o fazer subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel» (Ex 3, 7-8). Também hoje o grito de tantos irmãos e irmãs oprimidos chega ao céu. Perguntemo-nos: E chega também a nós? Mexe connosco? Comove-nos? Há muitos fatores que nos afastam uns dos outros, negando a fraternidade que originariamente nos une.

Na minha viagem a Lampedusa, à globalização da indiferença contrapus duas perguntas, que se tornam cada vez mais atuais: «Onde estás?» (Gn 3, 9) e «Onde está o teu irmão?» (Gn 4, 9). O caminho quaresmal será concreto, se, voltando a ouvir tais perguntas, confessarmos que hoje ainda estamos sob o domínio do Faraó. É um domínio que nos deixa exaustos e insensíveis. É um modelo de crescimento que nos divide e nos rouba o futuro. A terra, o ar e a água estão poluídos por ele, mas as próprias almas acabam contaminadas por tal domínio. De facto, embora a nossa libertação tenha começado com o Batismo, permanece em nós uma inexplicável nostalgia da escravatura. É como uma atração para a segurança das coisas já vistas, em detrimento da liberdade.

Quero apontar-vos, na narração do Êxodo, um detalhe de não pequena importância: é Deus que vê, que Se comove e que liberta, não é Israel que o pede. Com efeito, o Faraó extingue também os sonhos, rouba o céu, faz parecer imutável um mundo onde a dignidade é espezinhada e os vínculos autênticos são negados. Por outras palavras, o Faraó consegue vincular-nos a ele. Perguntemo-nos: Desejo um mundo novo? E estou disposto a desligar-me dos compromissos com o velho? O testemunho de muitos irmãos bispos e dum grande número de agentes de paz e justiça convence-me cada vez mais de que aquilo que é preciso denunciar é um défice de esperança. Trata-se de um impedimento a sonhar, um grito mudo que chega ao céu e comove o coração de Deus. Assemelha-se àquela nostalgia da escravidão que paralisa Israel no deserto, impedindo-o de avançar. O êxodo pode ser interrompido: não se explicaria doutro modo porque é que tendo uma humanidade chegado ao limiar da fraternidade universal e a níveis de progresso científico, técnico, cultural e jurídico capazes de garantir a todos a dignidade, tateie ainda na escuridão das desigualdades e dos conflitos.

Deus não Se cansou de nós. Acolhamos a Quaresma como o tempo forte em que a sua Palavra nos é novamente dirigida: «Eu sou o Senhor, teu Deus, que te fiz sair da terra do Egipto, da casa da servidão» (Ex 20, 2). É tempo de conversão, tempo de liberdade. O próprio Jesus, como recordamos anualmente no primeiro domingo da Quaresma, foi impelido pelo Espírito para o deserto a fim de ser posto à prova na sua liberdade. Durante quarenta dias, tê-Lo-emos diante dos nossos olhos e connosco: é o Filho encarnado. Ao contrário do Faraó, Deus não quer súbditos, mas filhos. O deserto é o espaço onde a nossa liberdade pode amadurecer numa decisão pessoal de não voltar a cair na escravidão. Na Quaresma, encontramos novos critérios de juízo e uma comunidade com a qual avançar por um caminho nunca percorrido.

Isto comporta uma luta: assim no-lo dizem claramente o livro do Êxodo e as tentações de Jesus no deserto. Com efeito, à voz de Deus, que diz «Tu és o meu Filho amado» (Mc 1, 11) e «não haverá para ti outros deuses na minha presença» (Ex 20, 3), contrapõem-se as mentiras do inimigo. Mais temíveis que o Faraó são os ídolos: poderíamos considerá-los como a voz do inimigo dentro de nós. Poder tudo, ser louvado por todos, levar a melhor sobre todos: todo o ser humano sente dentro de si a sedução desta mentira. É uma velha estrada. Assim podemos apegar-nos ao dinheiro, a certos projetos, ideias, objetivos, à nossa posição, a uma tradição, até mesmo a algumas pessoas. Em vez de nos pôr em movimento, paralisar-nos-ão. Em vez de nos fazer encontrar, contrapor-nos-ão. Mas existe uma nova humanidade, o povo dos pequeninos e humildes que não cedeu ao fascínio da mentira. Enquanto os ídolos tornam mudos, cegos, surdos, imóveis aqueles que os servem (cf. Sal 115, 4-8), os pobres em espírito estão imediatamente disponíveis e prontos: uma força silenciosa de bem que cuida e sustenta o mundo.

É tempo de agir e, na Quaresma, agir é também parar: parar em oração, para acolher a Palavra de Deus, e parar como o Samaritano em presença do irmão ferido. O amor de Deus e o do próximo formam um único amor. Não ter outros deuses é parar na presença de Deus, junto da carne do próximo. Por isso, oração, esmola e jejum não são três exercícios independentes, mas um único movimento de abertura, de esvaziamento: lancemos fora os ídolos que nos tornam pesados, fora os apegos que nos aprisionam. Então o coração atrofiado e isolado despertará. Para isso há que diminuir a velocidade e parar. Assim a dimensão contemplativa da vida, que a Quaresma nos fará reencontrar, mobilizará novas energias. Na presença de Deus, tornamo-nos irmãs e irmãos, sentimos os outros com nova intensidade: em vez de ameaças e de inimigos encontramos companheiras e companheiros de viagem. Tal é o sonho de Deus, a terra prometida para a qual tendemos, quando saímos da escravidão.

A forma sinodal da Igreja, que estamos a redescobrir e cultivar nestes anos, sugere que a Quaresma seja também tempo de decisões comunitárias, de pequenas e grandes opções contracorrente, capazes de modificar a vida quotidiana das pessoas e a vida de toda uma coletividade: os hábitos nas compras, o cuidado com a criação, a inclusão de quem não é visto ou é desprezado. Convido toda a comunidade cristã a fazer isto: oferecer aos seus fiéis momentos para repensarem os estilos de vida; reservar um tempo para verificarem a sua presença no território e o contributo que oferecem para o tornar melhor. Ai se a penitência cristã fosse como aquela que deixou Jesus triste! Também a nós diz Ele: «Não mostreis um ar sombrio, como os hipócritas, que desfiguram o rosto para que os outros vejam que eles jejuam» (Mt 6, 16). Pelo contrário, veja-se a alegria nos rostos, sinta-se o perfume da liberdade, irradie aquele amor que faz novas todas as coisas, a começar das mais pequenas e próximas. Isto pode acontecer em toda a comunidade cristã.

Na medida em que esta Quaresma for de conversão, a humanidade extraviada sentirá um estremeção de criatividade: o lampejar duma nova esperança. Quero dizer-vos, como aos jovens que encontrei em Lisboa no verão passado: «Procurai e arriscai; sim, procurai e arriscai. Neste momento histórico, os desafios são enormes, os gemidos dolorosos: estamos a viver uma terceira guerra mundial feita aos pedaços. Mas abracemos o risco de pensar que não estamos numa agonia, mas num parto; não no fim, mas no início dum grande espetáculo. E é preciso coragem para pensar assim» ( Discurso aos estudantes universitários, 03/VIII/2023). É a coragem da conversão, da saída da escravidão. A fé e a caridade guiam pela mão esta esperança menina. Ensinam-na a caminhar e, ao mesmo tempo, ela puxa-as para a frente. [1]

Abençoo-vos a todos vós e ao vosso caminho quaresmal.

Roma – São João de Latrão, no I Domingo do Advento, 3 de dezembro de 2023.

FRANCISCO

 

[1] Cf. Charles Péguy, Il portico del mistero della seconda virtù, Milão 1978, 17-19.

Visita à prisão de Leiria

No passado dia 06 de janeiro os “Samaritanos” associação de fiéis visitadores dos Estabelecimentos Prisionais de Leiria, juntamente, com o capelão, padre Jorge Fernandes, o nosso vigário paroquial, apresentaram os seus cumprimentos/votos de um bom ano de 2024 aos jovens reclusos e entregaram uma pequena lembrança a todos os reclusos. Esta dinâmica foi antecipada de um encontro e atividade com os jovens reclusos que os sensibilizava para o sentido do Natal e o nascimento de Jesus para as suas vidas.

Este ano tivemos a alegria de poder contar com a presença de alguns adultos, jovens e adolescentes da nossa paroquia que aceitaram o desafio de conhecerem de mais perto a realidade do que é a prisão e quem são os presos.

O resultado foi muito positivo e motivador para ambos os lados: presos e visitadores e, como resultado desta ação, fica o testemunho da Mariana e da Maria Inês:

No decorrer do projetoPés quentes” tivemos a oportunidade de, no passado dia 6 de janeiro, visitar os reclusos do Estabelecimento Prisional de Leiria para Jovens, entregando-lhes os donativos angariados e transmitindo mensagens de esperança e alegria para o ano que se inicia. Para nós, esta foi uma oportunidade única de interação e partilha. Todos os reclusos a quem entregámos uma pequena lembrança e com quem conversámos foram dinâmicos e interessados em ouvir a mensagem que trazíamos sobre Cristo, questionando-nos e apresentando as suas próprias perspetivas.

Foi uma experiência enriquecedora e positiva!”.

 

A celebração do quinto Domingo da Palavra de Deus, instituído pelo Papa Francisco em 30 de setembro de 2019, será realizada em 21 de janeiro de 2024. O lema desta edição foi tirado do Evangelho de João: "Permanecei na minha Palavra" (Jo 8,31). No domingo, dia 21 de janeiro, às 9h30 hora italiana, (05h30 hora do Brasil), o Papa presidirá a celebração eucarística na Basílica de São Pedro e, em seguida, com o objetivo de reavivar a responsabilidade que os fiéis têm no conhecimento da Sagrada Escritura, presenteará os participantes da Missa com o Evangelho de Marcos.

Os ministérios de Leitor e Catequista serão conferidos a leigos

Durante a celebração, os ministérios de Leitor e Catequista serão conferidos a homens e mulheres leigos, em particular duas pessoas receberão o ministério de Leitor e nove o de Catequista. Os fiéis leigos representam o povo de Deus e vêm do Brasil, Bolívia, Coreia, Chade, Alemanha e Antilhas. A Missa será transmitida ao vivo, com comentários em português, através do nosso site e dos nossos canais no YouTube e no Facebook.

Subsídio litúrgico-pastoral gratuito 

O setor para as questões fundamentais da evangelização no mundo do Dicastério para a Evangelização, encarregado pelo Papa de promover o evento, disponibilizou online um subsídio litúrgico-pastoral gratuito, útil para a vivência da Palavra de Deus e da oração na comunidade, na família e pessoalmente. O texto, disponível este ano somente em versão digital, pode ser baixado on-line em italiano, inglês, espanhol, português, francês e polonês no site www.evangelizatio.va. Uma ferramenta que oferece propostas para incentivar um encontro profundo com a Palavra de Deus na comunidade, na família e na vida cotidiana, além de incluir artigos, meditações, textos para Adoração e sugestões pastorais.

O "Ano da Oração"

No Domingo da Palavra de Deus, espera-se que o Papa estabeleça oficialmente o Ano da Oração, em preparação para o Jubileu de 2025. Depois de promover a reflexão sobre os documentos e o estudo dos frutos do Concílio Vaticano II em 2023, por vontade do Papa Francisco, 2024 será dedicado, nas dioceses do mundo, a redescobrir a centralidade da oração.

FESTA DA LUZ

No passado sábado dia 13 de janeiro a celebração da Eucaristia das 19h foi especial. As crianças e familias que frequentam o terceiro ano da catequese nos 3 centros de catequese: Casal do malta, Marinha Grande e Picassinos juntaram-se para celebrar a Festa da Luz.

Foi uma celebração muito simples mas cheia de simbolismo e de muito calor humano, que nos fez reviver o nosso Batismo.  As velas do batismo que cada criança trouxe ajudaram a relembrar a importância daquela luz pequenina que queremos deixar brilhar na nossa vida. Como relembrava na celebração o P. Patricio é uma luz pequenina, frágil mas que tem muita força . Aquela vela que desde o batismo estava fechada numa caixa se calhar deveria estar mais presente, fisicamente, nas familias, para nos relembrarmos que apesar das nossas fragilidades humanas temos a força da vida de Cristo ressuscitado que nunca se apaga, desde que nós não deixemos e tenhamos vontade de nos deixar iluminar e guiar por Ele.

A celebração teve inicio com as luzes da igreja quase todas apagadas, precisamente para podermos fazer esta experiência da passagem da escuridão para a luz .

“A celebração sem luz, fez-me lembrar das dificuldades que já tive que muitas vezes são provas, senti-me sozinha...mas quando vi o Padre Patrício  [pegar no cirio pascal] e acender vela por vela e nós acendermos outras, lembrei-me das pessoas que apareceram na minha vida e que iluminaram o meu coração. Tantas velas numa só luz, luz divina que representa Jesus no nosso coração e esta conexão é um  todo” (Rute Luís, mãe)

Esta festa foi um momento para recordarmos o nosso batismo, mas também para que as crianças e familias do terceiro ano continuem a percorrer um caminho com verdadeiro sentido para a grande festa que estão a preparar para participar, pela Comunhão, no alimento da Eucaristia que irão viver pela primeira vez no decurso deste ano.

Um agradecimento muito especial a todos os que participaram na celebração e a todos os que participaram para que o mesmo acontecesse: aos pais e familias, aos catequistas ao coro, à comissão da Igreja e aos nossos Padres.

Esta luz pequenina, vou deixá-la brilhar (…)Onde quer que eu vá, vou deixá-la brilhar. (…) Bem dentro de mim, vou deixá-la brilhar.

Que ela brilhe sempre nas nossas vidas. Que não a deixemos apagar e que o nosso testemunho de cristãos a leve de mão em mão, de coração em coração, a brilhar pelo mundo.

Viviana Cordeiro

MENSAGEM DO SANTO PADRE FRANCISCO
PARA A CELEBRAÇÃO DO DIA MUNDIAL DA PAZ

1º DE JANEIRO DE 2024

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL E PAZ

No início do novo ano, tempo de graça concedido pelo Senhor a cada um de nós, quero dirigir-me ao Povo de Deus, às nações, aos Chefes de Estado e de Governo, aos Representantes das diversas religiões e da sociedade civil, a todos os homens e mulheres do nosso tempo para lhes expressar os meus votos de paz.

1. O progresso da ciência e da tecnologia como caminho para a paz

A Sagrada Escritura atesta que Deus deu aos homens o seu Espírito a fim de terem «sabedoria, inteligência e capacidade para toda a espécie de trabalho» (Ex 35, 31). A inteligência é expressão da dignidade que nos foi dada pelo Criador, que nos fez à sua imagem e semelhança (cf. Gn 1, 26) e nos tornou capazes, através da liberdade e do conhecimento, de responder ao seu amor. Esta qualidade fundamentalmente relacional da inteligência humana manifesta-se de modo particular na ciência e na tecnologia, que são produtos extraordinários do seu potencial criativo.

Na Constituição pastoral Gaudium et spes, o Concílio Vaticano II reafirmou esta verdade, declarando que «sempre o homem procurou, com o seu trabalho e engenho, desenvolver mais a própria vida». [1] Quando os seres humanos, «recorrendo à técnica», se esforçam por que a terra «se torne habitação digna para toda a humanidade», [2] agem segundo o desígnio divino e cooperam com a vontade que Deus tem de levar à perfeição a criação e difundir a paz entre os povos. Assim o próprio progresso da ciência e da técnica – na medida em que contribui para uma melhor organização da sociedade humana, para o aumento da liberdade e da comunhão fraterna – leva ao aperfeiçoamento do homem e à transformação do mundo.

Justamente nos alegramos e sentimos reconhecidos pelas extraordinárias conquistas da ciência e da tecnologia, graças às quais se pôs remédio a inúmeros males que afligiam a vida humana e causavam grandes sofrimentos. Ao mesmo tempo, os progressos técnico-científicos, que permitem exercer um controle – até agora inédito – sobre a realidade, colocam nas mãos do homem um vasto leque de possibilidades, algumas das quais podem constituir um risco para a sobrevivência humana e um perigo para a casa comum. [3]

Deste modo os progressos notáveis das novas tecnologias da informação, sobretudo na esfera digital, apresentam oportunidades entusiasmantes mas também graves riscos, com sérias implicações na prossecução da justiça e da harmonia entre os povos. Por isso torna-se necessário interrogar-nos sobre algumas questões urgentes: quais serão as consequências, a médio e longo prazo, das novas tecnologias digitais? E que impacto terão elas sobre a vida dos indivíduos e da sociedade, sobre a estabilidade e a paz?

2. O futuro da inteligência artificial, por entre promessas e riscos

Os progressos da informática e o desenvolvimento das tecnologias digitais, nas últimas décadas, começaram já a produzir profundas transformações na sociedade global e nas suas dinâmicas. Os novos instrumentos digitais estão a mudar a fisionomia das comunicações, da administração pública, da instrução, do consumo, dos intercâmbios pessoais e de inúmeros outros aspetos da vida diária.

Além disso as tecnologias que se servem duma multiplicidade de algoritmos podem, dos vestígios digitais deixados na internet, extrair dados que permitem controlar os hábitos mentais e relacionais das pessoas para fins comerciais ou políticos, muitas vezes sem o seu conhecimento, limitando o exercício consciente da sua liberdade de escolha. De facto, num espaço como a webcaraterizado por uma sobrecarga de informações, pode-se compor o fluxo de dados segundo critérios de seleção nem sempre enxergados pelo utente.

Devemos recordar-nos de que a pesquisa científica e as inovações tecnológicas não estão desencarnadas da realidade nem são «neutrais», [4] mas estão sujeitas às influências culturais. Sendo atividades plenamente humanas, os rumos que tomam refletem opções condicionadas pelos valores pessoais, sociais e culturais de cada época. E o mesmo se diga dos resultados que alcançam: enquanto fruto de abordagens especificamente humanas do mundo envolvente, têm sempre uma dimensão ética, intimamente ligada às decisões de quem projeta a experimentação e orienta a produção para objetivos particulares.

Isto aplica-se também às formas de inteligência artificial. Desta, até ao momento, não existe uma definição unívoca no mundo da ciência e da tecnologia. A própria designação, que já entrou na linguagem comum, abrange uma variedade de ciências, teorias e técnicas destinadas a fazer com que as máquinas, no seu funcionamento, reproduzam ou imitem as capacidades cognitivas dos seres humanos. Falar de «formas de inteligência», no plural, pode ajudar sobretudo a assinalar o fosso intransponível existente entre estes sistemas, por mais surpreendentes e poderosos que sejam, e a pessoa humana: em última análise, aqueles são «fragmentários» já que têm possibilidades de imitar ou reproduzir apenas algumas funções da inteligência humana. Além disso o uso do plural destaca que tais dispositivos, muito diferentes entre si, devem ser sempre considerados como «sistemas sociotécnicos». Com efeito o seu impacto, independentemente da tecnologia de base, depende não só da projetação, mas também dos objetivos e interesses de quem os possui e de quem os desenvolve, bem como das situações em que são utilizados.

Por conseguinte a inteligência artificial deve ser entendida como uma galáxia de realidades diversas e não podemos presumir a priori que o seu desenvolvimento traga um contributo benéfico para o futuro da humanidade e para a paz entre os povos. O resultado positivo só será possível se nos demonstrarmos capazes de agir de maneira responsável e respeitar valores humanos fundamentais como «a inclusão, a transparência, a segurança, a equidade, a privacidade e a fiabilidade». [5]

E não é suficiente presumir, por parte de quem projeta algoritmos e tecnologias digitais, um empenho por agir de modo ético e responsável. É preciso reforçar ou, se necessário, instituir organismos encarregados de examinar as questões éticas emergentes e tutelar os direitos de quantos utilizam formas de inteligência artificial ou são influenciados por ela. [6]

Assim, a imensa expansão da tecnologia deve ser acompanhada por uma adequada formação da responsabilidade pelo seu desenvolvimento. A liberdade e a convivência pacífica ficam ameaçadas, quando os seres humanos cedem à tentação do egoísmo, do interesse próprio, da ânsia de lucro e da sede de poder. Por isso temos o dever de alargar o olhar e orientar a pesquisa técnico-científica para a prossecução da paz e do bem comum, ao serviço do desenvolvimento integral do homem e da comunidade. [7]

A dignidade intrínseca de cada pessoa e a fraternidade que nos une como membros da única família humana devem estar na base do desenvolvimento de novas tecnologias e servir como critérios indiscutíveis para as avaliar antes da sua utilização, para que o progresso digital possa verificar-se no respeito pela justiça e contribuir para a causa da paz. Os avanços tecnológicos que não conduzem a uma melhoria da qualidade de vida da humanidade inteira, antes pelo contrário agravam as desigualdades e os conflitos, nunca poderão ser considerados um verdadeiro progresso. [8]

A inteligência artificial tornar-se-á cada vez mais importante. Os desafios que coloca não são apenas de ordem técnica, mas também antropológica, educacional, social e política. Deixa esperar, por exemplo, poupança de esforços, produção mais eficiente, transportes mais fáceis e mercados mais dinâmicos, bem como uma revolução nos processos de recolha, organização e verificação de dados. Precisamos de estar conscientes das rápidas transformações em curso e geri-las de forma a salvaguardar os direitos humanos fundamentais, respeitando as instituições e as leis que promovem o progresso humano integral. A inteligência artificial deveria estar ao serviço dum melhor potencial humano e das nossas mais altas aspirações, e não em competição com eles.

3. A tecnologia do futuro: máquinas que aprendem sozinhas

Nas suas múltiplas formas, a inteligência artificial, baseada em técnicas de aprendizagem automática (machine learning), embora ainda numa fase pioneira, já está a introduzir mudanças notáveis no tecido das sociedades, exercendo uma influência profunda nas culturas, nos comportamentos sociais e na construção da paz.

Desenvolvimentos como a aprendizagem automática (machine learning) ou a aprendizagem profunda (deep learning) levantam questões que transcendem os âmbitos da tecnologia e da engenharia e têm a ver com uma compreensão intimamente ligada ao significado da vida humana, aos processos basilares do conhecimento e à capacidade que tem a mente de alcançar a verdade.

A capacidade de alguns dispositivos produzirem textos sintática e semanticamente coerentes, por exemplo, não é garantia de fiabilidade. Diz-se que podem «alucinar», isto é, gerar afirmações que à primeira vista parecem plausíveis, mas na realidade são infundadas ou preconceituosas. Isto coloca um sério problema quando a inteligência artificial é utilizada em campanhas de desinformação que espalham notícias falsas e levam a uma desconfiança crescente relativamente aos meios de comunicação. A confidencialidade, a posse dos dados e a propriedade intelectual são outros âmbitos em que as tecnologias em questão comportam graves riscos, aos quais se vêm juntar outras consequências negativas ligadas a um uso indevido, como a discriminação, a interferência nos processos eleitorais, a formação duma sociedade que vigia e controla as pessoas, a exclusão digital e a exacerbação dum individualismo cada vez mais desligado da coletividade. Todos estes fatores correm o risco de alimentar os conflitos e obstaculizar a paz.

4. O sentido do limite, no paradigma tecnocrático

O nosso mundo é demasiado vasto, variado e complexo para ser completamente conhecido e classificado. A mente humana nunca poderá esgotar a sua riqueza, nem sequer com a ajuda dos algoritmos mais avançados. De facto, estes não oferecem previsões garantidas do futuro, mas apenas aproximações estatísticas. Nem tudo pode ser previsto, nem tudo pode ser calculado; no fim de contas, «a realidade é superior à ideia» [9] e, por mais prodigiosa que seja a nossa capacidade de calcular, haverá sempre um resíduo inacessível que escapa a qualquer tentativa de quantificação.

Além disso, a grande quantidade de dados analisados pelas inteligências artificiais não é, por si só, garantia de imparcialidade. Quando os algoritmos extrapolam informações, correm sempre o risco de as distorcer, replicando as injustiças e os preconceitos dos ambientes onde têm origem. Quanto mais rápidos e complexos eles se tornam, mais difícil é compreender por que produziram um determinado resultado.

As máquinas inteligentes podem desempenhar as tarefas que lhes são atribuídas com uma eficiência cada vez maior, mas a finalidade e o significado das suas operações continuarão a ser determinados ou capacitados por seres humanos com o seu próprio universo de valores. O risco é que os critérios subjacentes a certas escolhas se tornem menos claros, que a responsabilidade de decisão seja ocultada e que os produtores possam subtrair-se à obrigação de agir para o bem da comunidade. Em certo sentido, isto é favorecido pelo sistema tecnocrático, que alia a economia à tecnologia e privilegia o critério da eficiência, tendendo a ignorar tudo o que não esteja ligado aos seus interesses imediatos. [10]

Isto deve fazer-nos refletir sobre um aspeto transcurado frequentemente na atual mentalidade tecnocrática e eficientista, mas decisivo para o desenvolvimento pessoal e social: o «sentido do limite». Com efeito o ser humano, mortal por definição, pensando em ultrapassar todo o limite mediante a técnica, corre o risco, na obsessão de querer controlar tudo, de perder o controle sobre si mesmo; na busca duma liberdade absoluta, de cair na espiral duma ditadura tecnológica. Reconhecer e aceitar o próprio limite de criatura é condição indispensável para que o homem alcance ou, melhor, acolha a plenitude como uma dádiva; ao passo que, no contexto ideológico dum paradigma tecnocrático animado por uma prometeica presunção de autossuficiência, as desigualdades poderiam crescer sem medida, e o conhecimento e a riqueza acumular-se nas mãos de poucos, com graves riscos para as sociedades democráticas e uma coexistência pacífica. [11]

5. Temas quentes para a ética

No futuro, a fiabilidade de quem solicita um mútuo, a idoneidade dum indivíduo para determinado emprego, a possibilidade de reincidência dum condenado ou o direito a receber asilo político ou assistência social poderão ser determinados por sistemas de inteligência artificial. A falta de níveis diversificados de mediação que tais sistemas introduzem está particularmente exposta a formas de preconceito e discriminação: os erros do sistema podem multiplicar-se facilmente, gerando não só injustiças em casos individuais, mas também, por efeito dominó, verdadeiras formas de desigualdade social.

Além disso, por vezes, as formas de inteligência artificial parecem capazes de influenciar as decisões dos indivíduos através de opções predeterminadas associadas a estímulos e dissuasões, ou então através de sistemas de regulação das opções pessoais baseados na organização das informações. Estas formas de manipulação ou controle social requerem atenção e vigilância cuidadosas, implicando uma clara responsabilidade legal por parte dos produtores, de quem os contrata e das autoridades governamentais.

O ato de se confiar a processos automáticos que dispõem os indivíduos por categorias, por exemplo, através dum uso invasivo da vigilância ou da adoção de sistemas de crédito social, poderia ter repercussões profundas também no tecido civil, estabelecendo classificações inadequadas entre os cidadãos. E estes processos artificiais de classificação poderiam levar também a conflitos de poder, envolvendo não apenas destinatários virtuais, mas também pessoas de carne e osso. O respeito fundamental pela dignidade humana requer a rejeição de que a unicidade da pessoa seja identificada com um conjunto de dados. Não se deve permitir que os algoritmos determinem o modo como entendemos os direitos humanos, ponham de lado os valores essenciais da compaixão, da misericórdia e do perdão, ou eliminem a possibilidade de um indivíduo mudar e deixar para trás o passado.

Neste contexto, não podemos deixar de considerar o impacto das novas tecnologias no âmbito laboral: trabalhos, que outrora eram prerrogativa exclusiva da mão-de-obra humana, acabam rapidamente absorvidos pelas aplicações industriais da inteligência artificial. Também neste caso, há substancialmente o risco duma vantagem desproporcionada para poucos à custa do empobrecimento de muitos.  A Comunidade Internacional, ao ver como tais formas de tecnologia penetram cada vez mais profundamente nos locais de trabalho, deveria considerar como alta prioridade o respeito pela dignidade dos trabalhadores e a importância do emprego para o bem-estar económico das pessoas, das famílias e das sociedades, a estabilidade dos empregos e a equidade dos salários.

6. Transformaremos as espadas em relhas de arado?

Nestes dias, contemplando o mundo que nos rodeia, não se pode ignorar as graves questões éticas relacionadas com o setor dos armamentos. A possibilidade de efetuar operações militares através de sistemas de controle remoto levou a uma perceção menor da devastação por eles causada e da responsabilidade da sua utilização, contribuindo para uma abordagem ainda mais fria e destacada da imensa tragédia da guerra. A pesquisa sobre as tecnologias emergentes no setor dos chamados «sistemas de armas letais autónomas», incluindo a utilização bélica da inteligência artificial, é um grave motivo de preocupação ética. Os sistemas de armas autónomos nunca poderão ser sujeitos moralmente responsáveis: a exclusiva capacidade humana de julgamento moral e de decisão ética é mais do que um conjunto complexo de algoritmos, e tal capacidade não pode ser reduzida à programação duma máquina que, por mais «inteligente» que seja, permanece sempre uma máquina. Por esta razão, é imperioso garantir uma supervisão humana adequada, significativa e coerente dos sistemas de armas.

Também não podemos ignorar a possibilidade de armas sofisticadas caírem em mãos erradas, facilitando, por exemplo, ataques terroristas ou intervenções visando desestabilizar instituições legítimas de Governo. Em resumo, o mundo não precisa realmente que as novas tecnologias contribuam para o iníquo desenvolvimento do mercado e do comércio das armas, promovendo a loucura da guerra. Ao fazê-lo, não só a inteligência, mas também o próprio coração do homem, correrá o risco de se tornar cada vez mais «artificial». As aplicações técnicas mais avançadas não devem ser utilizadas para facilitar a resolução violenta dos conflitos, mas para pavimentar os caminhos da paz.

Numa ótica mais positiva, se a inteligência artificial fosse utilizada para promover o desenvolvimento humano integral, poderia introduzir inovações importantes na agricultura, na instrução e na cultura, uma melhoria do nível de vida de inteiras nações e povos, o crescimento da fraternidade humana e da amizade social. Em última análise, a forma como a utilizamos para incluir os últimos, isto é, os irmãos e irmãs mais frágeis e necessitados, é a medida reveladora da nossa humanidade.

Um olhar humano e o desejo dum futuro melhor para o nosso mundo levam à necessidade dum diálogo interdisciplinar voltado para um desenvolvimento ético dos algoritmos – a algor-etica -, em que sejam os valores a orientar os percursos das novas tecnologias. [12] As questões éticas deveriam ser tidas em consideração desde o início da pesquisa, bem como nas fases de experimentação, projetação, produção, distribuição e comercialização. Esta é a abordagem da ética da projetação, na qual as instituições educativas e os responsáveis pelo processo de decisão têm um papel essencial a desempenhar.

7. Desafios para a educação

O desenvolvimento duma tecnologia que respeite e sirva a dignidade humana tem implicações claras para as instituições educativas e para o mundo da cultura. Ao multiplicar as possibilidades de comunicação, as tecnologias digitais permitiram encontrar-se de novas formas. Todavia continua a ser necessária uma reflexão contínua sobre o tipo de relações para onde nos estão encaminhando. Os jovens estão a crescer em ambientes culturais impregnados de tecnologia, o que não pode deixar de pôr em causa os métodos de ensino e formação.

A educação para o uso de formas de inteligência artificial deveria visar sobretudo a promoção do pensamento crítico. É necessário que os utentes das várias idades, mas principalmente os jovens, desenvolvam uma capacidade de discernimento no uso de dados e conteúdos recolhidos na web ou produzidos por sistemas de inteligência artificial. As escolas, as universidades e as sociedades científicas são chamadas a ajudar os estudantes e profissionais a assumir os aspetos sociais e éticos do progresso e da utilização da tecnologia.

A formação no uso dos novos instrumentos de comunicação deveria ter em conta não só a desinformação, as notícias falsas, mas também a recrudescência preocupante de «medos ancestrais (...) que souberam esconder-se e revigorar-se por detrás das novas tecnologias». [13] Infelizmente, encontramo-nos mais uma vez a combater «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os muros (…), para impedir este encontro com outras culturas, com outras pessoas» [14] e o desenvolvimento duma coexistência pacífica e fraterna.

8. Desafios para o desenvolvimento do direito internacional

O alcance global da inteligência artificial deixa claro que, juntamente com a responsabilidade dos Estados soberanos de regular a sua utilização internamente, as Organizações Internacionais podem desempenhar um papel decisivo na obtenção de acordos multilaterais e na coordenação da sua aplicação e implementação. [15] A este respeito, exorto a Comunidade das Nações a trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas variadas formas. Naturalmente o objetivo da regulamentação não deveria ser apenas a prevenção de más aplicações, mas também o incentivo às boas aplicações, estimulando abordagens novas e criativas e facilitando iniciativas pessoais e coletivas. [16]

Em última análise, na busca de modelos normativos que possam fornecer uma orientação ética aos criadores de tecnologias digitais, é indispensável identificar os valores humanos que deveriam estar na base dos esforços das sociedades para formular, adotar e aplicar os quadros legislativos necessários. O trabalho de elaboração de diretrizes éticas para a produção de formas de inteligência artificial não pode prescindir da consideração de questões mais profundas relativas ao significado da existência humana, à proteção dos direitos humanos fundamentais, à busca da justiça e da paz. Este processo de discernimento ético e jurídico pode revelar-se preciosa ocasião para uma reflexão compartilhada sobre o papel que a tecnologia deveria ter na nossa vida individual e comunitária e sobre a forma como a sua utilização possa contribuir para a criação dum mundo mais equitativo e humano. Por este motivo, nos debates sobre a regulamentação da inteligência artificial, dever-se-ia ter em conta as vozes de todas as partes interessadas, incluindo os pobres, os marginalizados e outros que muitas vezes permanecem ignorados nos processos de decisão globais.

* * *

Espero que esta reflexão encoraje a fazer com que os progressos no desenvolvimento de formas de inteligência artificial sirvam, em última análise, a causa da fraternidade humana e da paz. Não é responsabilidade de poucos, mas da família humana inteira. De facto, a paz é fruto de relações que reconhecem e acolhem o outro na sua dignidade inalienável, e de cooperação e compromisso na busca do desenvolvimento integral de todas as pessoas e de todos os povos.

No início do novo ano, a minha oração é que o rápido desenvolvimento de formas de inteligência artificial não aumente as já demasiadas desigualdades e injustiças presentes no mundo, mas contribua para pôr fim às guerras e conflitos e para aliviar muitas formas de sofrimento que afligem a família humana. Possam os fiéis cristãos, os crentes das várias religiões e os homens e mulheres de boa vontade colaborar harmoniosamente para aproveitar as oportunidades e enfrentar os desafios colocados pela revolução digital, e entregar às gerações futuras um mundo mais solidário, justo e pacífico.

Vaticano, 8 de dezembro de 2023.

Francisco

 

 

[1]N. 33.

[2] Ibid., 57.

[3]Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24/V/2015), 104.

[4]Cf. ibid., 114.

[5]Francisco,  Discurso aos participantes no Encontro dos «Minerva Dialogues» (27/III/2023).

[6]Cf. ibid.

[7]Cf. Francisco, Mensagem ao Presidente Executivo do «World Economic Forum» em Davos-Klosters (12/I/2018).

[8]Cf. Carta enc. Laudato si’, 194; Francisco,  Discurso aos participantes no Seminário «O bem comum na era digital» (27/IX/2019).

[9]Francisco,Exort. ap. Evangelii gaudium (24/XI/2013), 233.

[10]Cf. Carta enc. Laudato si’, 54.

[11]Cf. Francisco, Discurso aos participantes na Plenária da Pontifícia Academia em prol da Vida (28/II/2020).

[12]Cf. ibid.

[13]Francisco, Carta enc. Fratelli tutti (03/X/2020), 27.

[14]Cf. ibid.

[15]Cf. ibid., 170-175.

[16]Cf. Carta enc. Laudato si’, 177.

SERVIÇO DE ESCUTA E ATENDIMENTO ESPIRITUAL

Os padres ao serviço da nossa vigararia da Marinha Grande, após o apelo de muitas pessoas, sentem a necessidade pastoral de dedicarem tempo necessário para atendimento e acompanhamento espiritual quem precise e deseje tê-lo.

Temos consciência e acreditamos que com ajuda será mais fácil discernir os sinais da vontade de Deus. Vamos ter um espaço com horários definidos e num lugar preparado para o atendimento de quem sinta necessidade de partilhar preocupações, dúvidas… no sentido de melhor discernir a vontade de Deus.

Será às quintas feiras das 18h às 20h num anexo da igreja da Moita que estará semanalmente um padre para este serviço de atendimento e acompanhamento espiritual.

Para os interessados em melhor perceber este serviço ou pretendam dele usufruir podem levar um desdobrável que está em todas as igrejas com as explicações e pormenores de funcionamento. 

“O povo que andava nas trevas viu uma grande luz;
para aqueles que habitavam na sombra da morte,
uma luz começou a brilhar”
(Is 9,27).

Esta frase do profeta Isaías que abre a celebração da noite do Natal, continua a iluminar, ano após ano, a vida de uma grande multidão de pessoas, famílias e comunidades. No ambiente histórico desta solene proclamação do profeta, a alusão às “trevas” e “sombra da morte” não são simples figuras poéticas da escuridão, mas alusões dramáticas à destruição, ao luto e à miséria causada pela guerra, com o seu séquito de violência e destruição, de fome e morte.

Apesar de tudo isso, o profeta teima em anunciar uma mudança de cenário, propondo, em nome de Deus, uma conversão de mentalidades, com atitudes transformadoras e geradoras de um futuro diferente de luz e ternura, de justiça e paz.

A leitura deste e de outros textos do Profeta Isaías, não está longe do cenário em que hoje se encontra a humanidade, a começar pela própria Palestina, onde nasceram estes versos. A semelhança é evidente; apenas difere pelo monstruoso incremento do poder destruidor da indústria letal da guerra de que dispõem hoje o mundo. Além desta guerra na Palestina, outros cenários de conflito e destruição ensombram igualmente o panorama mundial, na Ucrânia, no Iémen, no Sudão e em tantos outros conflitos violentos, terrorismo, discriminação e injustiça, pondo em causa a vida de pessoas e famílias, onde se contam milhares de inocentes crianças e pessoas fragilizadas.

Estas situações, a que se juntam a corrupção e a manipulação de informação e de poder, levam ao descrédito das instituições públicas, a nível nacional e internacional, dando lugar a atitudes de resignação e apatia individualista, bem como ao radicalismo da violência armada ou do desvario manipulador e populista de ocasião. Mas, essas saídas para fora do campo sério do jogo transformador da história não remedeiam os problemas e não criam horizontes de paz duradoura fundada na dignidade, na justiça e na solidariedade, onde possam florescer a luz e o futuro de que fala o profeta.

Há dois milénios e meio que a voz do profeta continua a despertar os adormecidos no comodismo ou na apatia e vem semeando uma Palavra e um sonho de Deus para a humanidade. Não foi inútil esta Palavra poética e profética. Muitos deixaram-se transformar pela profecia e pelo Espírito que a inspira, sonharam o sonho de Deus e levantaram-se do medo, do desânimo e da apatia. Percorreram desertos de descrença e de ausência de meios, contagiaram outros e atravessaram rios de dificuldades e perigos, reconstruiram ruínas, recuperaram campos e pomares, construíram cidades de dignidade e solidariedade e afirmaram a possibilidade de um futuro melhor.

É a essa atitude concreta e transformadora que nos chama o Natal. O otimismo, o sonho criador de futuro, a luz que aquece o coração e move à ação, não são o resultado de tempos fáceis que favorecem visões otimistas e cómodas do amanhã. Sonhar e partilhar o sonho de Deus é particularmente importante e criador, nas situações difíceis e desafiadoras em que vivemos. A luz é particularmente preciosa onde há trevas, o consolo onde existem lágrimas, a reconciliação e a paz onde existem conflitos e guerras.

Hoje, neste Natal, é a nossa vez de nos levantar, de acender a luz da esperança possível, de vencer os desertos da incredulidade e da comodidade, de participar ativamente na construção de um mundo, mais humano, mais justo e em paz, mesmo a custo das distâncias a percorrer, das dificuldades e medos a vencer, das manipulações e derrotismos a superar. Porque há muitas armas de guerra a transformar em foices e arados; muito troar de canhões, tanques e aviões a substituir por canções de paz e solidariedade; palavras e atitudes de ódio, discriminação e exclusão a transformar em gestos de acolhimento, integração e solidariedade.

A profecia de Isaías apresenta-nos um dom e um caminho para a transformação que o Natal nos propõe: “Porque um menino nasceu para nós, um filho nos foi dado”. Não há nada de mais contrário ao choro de um recém-nascido que pede tranquilidade, atenção e cuidado, do que o estrondo das armas, a destruição dos meios de vida, os discursos de ódio e de exclusão. No centro do sonho de Isaías, a promessa do menino gera alegria, ternura e esperança, mas propõe-se igualmente como propósito de acolhimento, cuidado atento e amor.

Foi assim que surgiu o Menino, o Filho de Deus, confiado ao cuidado de Maria e José, ao qual deram o nome de Jesus, que significa Salvador. Ele veio para salvar e cuidar, a começar dos mais pequenos e frágeis, mas oferece-se, antes de mais, como um menino, um filho humano, que pede acolhimento, cuidado, atenção e carinho. Porque, acolhendo e cuidando, tornamo-nos melhores, mais humanos e entendemos a realidade concreta do projeto de Deus para transformar o mundo, não destruindo e amedrontado, mas cuidando e acarinhando.

Este é o espírito e a atitude do Natal que celebramos. Não vale apenas um dia, mas é uma atitude de vida, um projeto de família, de Igreja e de humanidade. Transformou a vida de Maria e de José, moveu a solidariedade de habitantes de Belém que acolheram uma família de refugiados, contagiou os pastores mais próximos, de vida sofrida e rude, pôs a caminho sábios magos do Oriente longínquo. Foi para todos eles que soou e se espalhou na terra, o coro dos anjos vindos do céu, que cantavam: “Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens que Ele ama”.

Continuemos a tornar realidade o Natal, fazendo ecoar, com a nossa voz, o canto dos anjos e, com as nossas atitudes transformadas, aquilo que cantamos.

Feliz Natal, na Alegria e na Esperança que o Menino de Belém nos vem trazer

† José Ornelas Carvalho
Bispo de Leiria-Fátima