Mensagem para a Quaresma de D. José Ornelas Carvalho

Subir ao alto,
para ver a realidade com os olhos de Deus

Com a celebração desta Quarta-Feira de Cinzas, damos início ao tempo da Quaresma, como caminho de preparação para a Páscoa. É um tempo de conversão, a partir do coração, isto é, daquilo que somos de verdade, da nossa maneira de pensar e de agir. É tempo de repensar com verdade aquilo que somos e como agimos, a partir do nosso encontro com Deus, e de deixar-nos transformar e transformar a realidade que nos rodeia, à luz desse encontro. 

O Papa Francisco, fala desta mudança de perspetiva, propondo o convite que Jesus faz aos seus discípulos para subirem com ele a uma montanha, onde se lhes revela glorioso, lhes mostra o sentido da Escritura e lhes faz ouvir a voz do Pai, que lhes recomenda: “Este é o meu Filho muito amado. Escutai-O!” (Mt 17,5).

Esta narração, afirma o Papa, ilumina o nosso caminho de conversão quaresmal: caminho de escuta da Palavra de Deus; caminho junto com os irmãos e irmãs, em Igreja; caminho que leva a contemplar o sonho de Deus para cada um de nós, na comunhão com Ele, na verdadeira felicidade que não acaba. 

Mas, como Pedro e os outros primeiros discípulos, temos vontade de seguir a Jesus e de estar com Ele, mas também temos dificuldade de entender e aceitar o caminho da cruz que Ele propõe. A cruz representa a disponibilidade para aceitar, com e como Jesus, a coerência (a verdade) da fé; para assumir com esforço, coragem e esperança, o caminho de transformação pessoal, da família, da Igreja, da sociedade. É preciso ter essa coragem de identificar aquilo que fere, humilha, destrói, que impede de caminhar e de construir algo de novo em nós e à nossa volta. 

Não se trata de assumir uma atitude de punição, humilhação, ou paralisante complexo de culpa. Reconhecer o mal, em nós e à nossa volta, à luz do olhar verdadeiro e misericordioso de Deus, é o início da conversão quaresmal que forja pessoas livres (livres daquilo que é só imediato e autorreferencial); pessoas que constroem solidamente e solidariamente a própria felicidade e um futuro luminoso à sua volta. Esse olhar libertador, não se fecha em si mesmo, mas leva a caminhar em direção aos outros e em direção a Deus.

Transformar purificando

Perante essa luz, sentimo-nos também como Igreja santa e pecadora. Jesus não escolheu discípulos perfeitos. Aceitou-os sem nunca os rejeitar, mesmo quando mostravam incompreensão, falta de coerência, e até negação e traição. Mas também nunca se resignou à falta de correspondência deles, dizendo que veio para os pecadores, como o médico vem para os doentes. Essa é a atitude que Ele continua a ter para com a Igreja e para com cada um dos seus discípulos e discípulas. 

É neste ambiente de conversão quaresmal que assumimos também a revolta e a humilhação pelos abusos sexuais que se verificaram na Igreja em Portugal nos últimos decénios. Sem entrar em polémicas sobre números — qualquer caso é uma enormidade injusta e dramática na vida de cada pessoa que foi vítima —, não podemos deixar de repudiar, lamentar e pedir perdão a quem foi objeto de cada um destes repugnantes atos. Repudiar e pedir perdão só têm sentido, porém, se significarem igualmente uma atitude ativa de não-resignação e de determinada e concreta atitude de ir ao encontro de que foi tão injustamente tratado e corajosamente se ergueu para denunciar, colaborando na reconstrução das suas vidas. Deixar-se converter significa igualmente fazer justiça a esse sofrimento, tomando todas as medidas para evitar que se repitam e, na medida do possível, tratar igualmente daqueles que foram autores desses atos. Este é um tema que não pode fugir do caminho quaresmal. Tomar a sério este drama será um modo de purificar e transformar positivamente a Igreja.

Juntos para caminhar

Outra proposta para esta Quaresma é a conversão para a transformação sinodal da Igreja em que estamos empenhados. É um caminho que está em curso e visa renovar cada paróquia, cada vigararia e diocese e a Igreja em todo o mundo, através da participação ativa de todos na vida da sua comunidade. Cada um recebeu, pelo batismo, a dignidade de filho e filha de Deus e dons e qualidades que vai desenvolvendo e colocando ao serviço dos outros, ao longo da vida. Esta relação filial com Deus realiza-se junto com outros irmãos e irmãs, filhos e filhas do mesmo Pai do Céu. 

O caminho sinodal deve converter as nossas atitudes concretas e o modo de organização das nossas comunidades. Na Igreja, não estamos simplesmente para assistir: Deus chama-nos a participar e a integrar a vida da nossa comunidade, na escuta da Sua Palavra, na oração, na comunhão e na missão comuns. A nossa conversão há de exprimir-se na participação, perguntando-nos diante de Deus: em que é que posso colaborar na missão comum.

Viver a festa universal do Evangelho

Uma expressão da sinodalidade, que faz parte da nossa conversão, na Quaresma deste ano, é a Jornada Mundial da Juventude que se realiza em Portugal no próximo mês de agosto. É uma ocasião única de fazer a experiência de uma Igreja que fala todas as línguas e se exprime em todas as culturas da terra. Acolher e viver a universalidade da Igreja, com os muitos milhares de jovens que chegarão a Portugal no próximo verão, significa estar presente, especialmente para os jovens. Para todos, trata-se de acolher e de colaborar para que essa festa da juventude, iluminada pelo Evangelho, possa acontecer entre nós. 

Saindo ao encontro de quem precisa

Finalmente, a transformação do Evangelho nunca é uma questão simplesmente interna de uma pessoa, de uma paróquia ou da Igreja no seu todo. A Igreja cumpre a sua missão quando sai de si mesma ao encontro de todo daqueles que, em qualquer parte do mundo têm particular necessidade de ajuda. 

Nesta Quaresma, de tantas situações difíceis do mundo em que vivemos, a nossa Diocese sublinha duas para um esforço especial da nossa vivência comum da Quaresma, duas situações particularmente dramáticas: a guerra na Ucrânia, que já dura há um ano e o terramoto que atingiu de forma devastadora a Turquia e a Síria

Destinaremos, pois, o produto da renúncia quaresmal deste ano a minorar o sofrimento destas populações devastadas pela guerra e pelos desastres naturais. Que o esforço e a renúncia que assumimos como caminho de Quaresma, possa ser colocada nas mãos de Deus para chegar a quem precisa urgentemente de ajuda!

A todos desejo uma santa e transformadora Quaresma, marcada pela cruz de Jesus que nos faz caminhar juntos em direção à Páscoa da libertação, da caridade solidária e da paz.

 ✝︎ José Ornelas Carvalho
Bispo de Leiria-Fátima

Mensagem do Papa para a Quaresma 2023

Ascese quaresmal, itinerário sinodal

Queridos irmãos e irmãs!

Os Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas coincidem em narrar o episódio da Transfiguração de Jesus. Neste acontecimento, vemos a resposta do Senhor a uma falta de compreensão manifestada pelos seus discípulos. De facto, pouco antes, registara-se uma verdadeira divergência entre o Mestre e Simão Pedro; este começara professando a sua fé em Jesus como Cristo, o Filho de Deus, mas em seguida rejeitara o seu anúncio da paixão e da cruz. E Jesus censurara-o asperamente: «Afasta-te, satanás! Tu és para Mim um estorvo, porque os teus pensamentos não são os de Deus, mas os dos homens» (Mt 16, 23).

Por isso, «seis dias depois, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e seu irmão João, e levou-os, só a eles, a um alto monte» (Mt 17, 1).

O evangelho da Transfiguração é proclamado, cada ano, no II Domingo da Quaresma.

Realmente, neste tempo litúrgico, o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte.

Embora os nossos compromissos ordinários nos peçam para permanecer nos lugares habituais, transcorrendo uma vida quotidiana frequentemente repetitiva e por vezes enfadonha, na Quaresma somos convidados a subir «a um alto monte» juntamente com Jesus, para viver com o Povo santo de Deus uma particular experiência de ascese.

A ascese quaresmal é um empenho, sempre animado pela graça, no sentido de superar as nossas faltas de fé e as resistências em seguir Jesus pelo caminho da cruz. Aquilo precisamente de que Pedro e os outros discípulos tinham necessidade. Para aprofundar o nosso conhecimento do Mestre, para compreender e acolher profundamente o mistério da salvação divina, realizada no dom total de si mesmo por amor, é preciso deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as vaidades. É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha. Estes requisitos são importantes também para o caminho sinodal, que nos comprometemos, como Igreja, a realizar. Far-nos-á bem refletir sobre esta relação que existe entre a ascese quaresmal e a experiência sinodal.

Para o «retiro» no Monte Tabor, Jesus leva consigo três discípulos, escolhidos para serem testemunhas dum acontecimento singular; Ele deseja que aquela experiência de graça não seja vivida solitariamente, mas de forma compartilhada, como é aliás toda a nossa vida de fé. A Jesus, seguimo-Lo juntos; e juntos, como Igreja peregrina no tempo, vivemos o Ano Litúrgico e, nele, a Quaresma, caminhando com aqueles que o Senhor colocou ao nosso lado como companheiros de viagem. À semelhança da subida de Jesus e dos discípulos ao Monte Tabor, podemos dizer que o nosso caminho quaresmal é «sinodal»,

porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do único Mestre. Mais ainda, sabemos que Ele próprio é o Caminho e, por conseguinte, tanto no itinerário litúrgico como no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador.

E chegamos ao momento culminante. O Evangelho narra que Jesus «Se transfigurou diante deles: o seu rosto resplandeceu como o sol, e as suas vestes tornaram-se brancas como a luz» (Mt 17, 2). Aqui aparece o «cimo», a meta do caminho. No final da subida e enquanto estão no alto do monte com Jesus, os três discípulos recebem a graça de O verem na sua glória, resplandecente de luz sobrenatural, que não vinha de fora, mas irradiava d’Ele mesmo. A beleza divina desta visão mostrou-se incomparavelmente superior a qualquer cansaço que os discípulos pudessem ter sentido quando subiam ao Tabor. Como toda a esforçada excursão de montanha, ao subir, é preciso manter os olhos bem fixos na vereda; mas o panorama que se deslumbra no final surpreende e compensa pela sua maravilha. Com frequência também o processo sinodal se apresenta árduo e por vezes podemos até desanimar; mas aquilo que nos espera no final é algo, sem dúvida, maravilhoso e surpreendente, que nos ajudará a compreender melhor a vontade de Deus e a nossa missão ao serviço do seu Reino.

A experiência dos discípulos no monte Tabor torna-se ainda mais enriquecedora quando, ao lado de Jesus transfigurado, aparecem Moisés e Elias, que personificam respetivamente a Lei e os Profetas (cf. Mt 17, 3). A novidade de Cristo é cumprimento da antiga Aliança e das promessas; é inseparável da história de Deus com o seu povo, e revela o seu sentido profundo. De forma análoga, o caminho sinodal está radicado na

tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada.

O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e realiza-se pela graça do seu mistério pascal. Para que, neste ano, se possa realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas «veredas» que é necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta.

A primeira diz respeito à ordem que Deus Pai dirige aos discípulos no Tabor, enquanto estão a contemplar Jesus transfigurado. A voz da nuvem diz: «Escutai-O» (Mt 17, 5).

Assim a primeira indicação é muito clara: escutar Jesus. A Quaresma é tempo de graça na medida em que nos pusermos à escuta d’Ele, que nos fala. E como nos fala Ele? Antes de mais nada na Palavra de Deus, que a Igreja nos oferece na Liturgia: não a deixemos cair em saco roto; se não podermos participar sempre na Missa, ao menos leiamos as Leituras bíblicas de cada dia valendo-nos até da ajuda da internet. Além da Sagrada Escritura, o Senhor fala-nos nos irmãos, sobretudo nos rostos e vicissitudes daqueles que precisam de ajuda. Mas quero acrescentar ainda outro aspeto, muito importante no processo sinodal: a escuta de Cristo passa também através da escuta dos irmãos e irmãs na Igreja; nalgumas fases, esta escuta recíproca é o objetivo principal, mas permanece sempre indispensável no método e estilo duma Igreja sinodal.

Ao ouvir a voz do Pai, «os discípulos caíram com a face por terra, muito assustados.

Aproximando-Se deles, Jesus tocou-lhes dizendo: “Levantai-vos e não tenhais medo”.

Erguendo os olhos, os discípulos apenas viram Jesus e mais ninguém» (Mt 17, 6-8). E aqui temos a segunda indicação para esta Quaresma: não refugiar-se numa religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições. A luz que Jesus mostra aos seus discípulos é uma antecipação da glória pascal, e é rumo a esta que se torna necessário caminhar seguindo «apenas Jesus e mais ninguém». A Quaresma

orienta-se para a Páscoa: o «retiro» não é um fim em si mesmo, mas prepara-nos para viver – com fé, esperança e amor – a paixão e a cruz, a fim de chegarmos à ressurreição.

Também o percurso sinodal não nos deve iludir quanto ao termo de chegada, que não é quando Deus nos dá a graça de algumas experiências fortes de comunhão, pois aí o Senho também nos repete: «Levantai-vos e não tenhais medo». Desçamos à planície e que a graça experimentada nos sustente para sermos artesãos de sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades.

Queridos irmãos e irmãs, que o Espírito Santo nos anime nesta Quaresma na subida com Jesus, para fazermos experiência do seu esplendor divino e assim, fortalecidos na fé, prosseguirmos o caminho com Ele, glória do seu povo e luz das nações.

Roma – São João de Latrão, na Festa da Conversão de São Paulo, 25 de janeiro de 2023.

FRANCISCO

OS DIAS DA PENITÊNCIA

Gostava, Senhor, que as cinzas que hoje me hão-de impor na celebração desta Quarta feira de Cinzas, fossem resultantes da fogueira onde queria que ardessem os meus pecados.

Assim, purificadas essas cinzas pelo Teu fogo divino, elas recordar-me-iam sempre as minhas fraquezas e eu agarrar-me-ia ainda mais a Ti, para em Ti encontrar as forças para resistir ao meu pecado.

Chegaram os dias da penitência!

Chegaram os dias em que me devo retirar para o meu deserto e ali, Senhor, perdoa-me a comparação, (cf Lc 4, 1), conduzido pelo Espírito Santo, encontrar o meu pecado, enfrentá-lo com a força do Teu Espírito, dele tomar consciência e, arrependido, voltar-me para Ti pedindo a graça de não mais voltar a pecar.

E em cada um destes dias, Senhor, Tu hás-de sorrir, olhar para mim cheio de ternurenta misericórdia, e dizeres-me que basta eu estender a minha mão para Ti, para Tu me agarrares e libertares das tempestades das areias do pecado que me querem enterrar.

Este meu deserto, Senhor, por Tua graça, tem ao fundo, lá longe onde ele acaba, (são tantos os meus pecados), uma luz extraordinária que tudo abrange e tudo toca, e que apaga todos os pecados, porque é a luz da Tua Ressurreição.

Este meu deserto, Senhor, é afinal o deserto de todos aqueles que em Ti acreditando, o percorrem e chegando junto de Ti, dizem como aquele leproso, (Mt 8, 2) – «Senhor, se quiseres podes purificar-me» - e ouvirão da Tua boca - «Quero, fica purificado». (Mt 8, 3)

Chegaram os dias da penitência, mas no meu coração arrependido, já se forma um grito contido, que gritarei no fim do deserto: Aleluia!

Jejum, esmola e oração

Na verdade, trata-se de três dimensões fundamentais da vida cristã, não exclusivas da Quaresma. E aliás, em certa medida, são práticas transversais a várias religiões e cujo apelo perdura até hoje, até em esferas seculares.

O sentido do jejum é a mortificação. Privar-se de alguma coisa para se lembrar, no seu próprio corpo, porventura, de que é de Deus que realmente dependemos, que é a Ele que devemos confiar a nossa inteira liberdade. A partir deste sentido, e examinando o nosso coração e a nossa vida com a luz do Espírito Santo, podemos perceber a que somos chamados a renunciar.

Jejum é, pois, renunciar a si próprio, seja através do esforço de não comer doces, de só ingerir líquidos, ou largar as redes sociais – mas é renunciar a si próprio para dar lugar a Deus, ou a outros que Deus nos confia. Jejum, esmola e oração estão, por isso, ligados entre si. Crescem uns com os outros.

Na oração o coração cresce silenciosamente. Pouco a pouco, sem alarido, começa a exigir uma atenção que excede o interesse, um cuidado que ultrapassa o conforto. Em Deus, por Deus, o coração alarga-se, rasga-se, para que entrem todos.

Dar esmola, ouvimos desde as parábolas que Jesus contou, é muito mais do que dar o que sobra. Sabemos a história da viúva pobre, que deu tudo, que deu o que lhe fazia falta. E sabemos também como Jesus se esconde dentro “dos irmãos mais pequeninos” e que servindo-os, é a Ele que servimos.

Partilhar o que temos e o que somos, e até o que também precisamos, põe-nos na posição exacta em que Deus nos criou: parte de um povo que caminha para Ele, em que a distância não pode querer dizer indiferença.

A diferença aqui será a dimensão transcendente que ganham: não fazemos jejum para equilibrar a dieta, ou não equilibramos a dieta para ganhar uma certa imagem. Fazemo-lo para nos libertarmos para Deus, para vivermos com Ele no centro. Assim como não rezamos ou meditamos para limpar a mente ou reduzirmos o stress do dia-a-dia, embora rezando isso possa até acontecer. Rezamos para levantar os olhos e o coração para Deus, que nos ama incondicionalmente e nos criou para esse amor. E finalmente, não será em nome de uma fraternidade tolerante mas abstracta que partilhamos os nossos bens, o nosso tempo, a nossa vida – mas porque queremos assumir a missão de Jesus.

A Quaresma é um tempo favorável, uma altura em que procuramos viver estas dimensões com especial intensidade, em preparação para a Páscoa, o centro de tudo. Chamados a recentrar-nos no essencial, guardando tempo para Deus, aceitando depender só Dele e viver entregando-nos como Ele, durante a Quaresma podemos esforçar-nos para viver à altura do nosso baptismo, certos de que a força não virá da app de jejum intermitente que instalámos nem da lista das obras de misericórdia que partilhámos nas stories do Instagram, mas da graça Deus, que nos assume como seus filhos. (Jejum, esmola e oração – Pontosj.pt)

Quarta – Feira de Cinzas

 A Igreja Católica inicia com a Quarta-feira de Cinzas, o tempo litúrgico da Quaresma no qual, durante 40 dias e através da vivência do jejum, da oração e da esmola, somos chamados a prepararmo-nos para a Semana Santa em que se atualizam os mistérios da Paixão, Morte e Ressurreição do Senhor Jesus.

Neste tempo, somos chamados à conversão pessoal, exortação que durante a imposição das Cinzas o celebrante expressa com as palavras: “Convertei-vos e acreditai no Evangelho”. Do mesmo modo, com a expressão “Lembra-te de que és pó e ao pó hás-de voltar”, recorda-se a fragilidade da vida humana e que a morte é um destino inevitável.

Na Roma antiga, os fiéis começavam com uma penitência pública o primeiro dia de Quaresma no qual eram salpicados com cinzas. Atualmente os fiéis são marcados com uma cruz na testa com as cinzas obtidas ao queimar os ramos usados e benzidos no domingo de Ramos do ano anterior.

O Papa Francisco na sua mensagem para a quaresma diz-nos: “ Realmente, neste tempo litúrgico, o Senhor toma-nos consigo e conduz-nos à parte. Embora os nossos compromissos ordinários nos peçam para permanecer nos lugares habituais, transcorrendo uma vida quotidiana frequentemente repetitiva e por vezes enfadonha, na Quaresma somos convidados a subir «a um alto monte» juntamente com Jesus, para viver com o Povo santo de Deus uma particular experiência de ascese.

A ascese quaresmal é um empenho, sempre animado pela graça, no sentido de superar as nossas faltas de fé e as resistências em seguir Jesus pelo caminho da cruz.”. Um caminho para nos tornarmos pessoas melhores e que buscam o bem no seu dia-a-dia.

 

Oração, penitência e caridade: as três práticas quaresmais

 

A oração é uma condição indispensável para o encontro com Deus. Na oração, o cristão entra em diálogo íntimo com o Senhor, deixa que a graça entre no seu coração e, como Maria, abre-se para a oração do Espírito cooperando com ela na sua resposta livre e generosa (ver Lc 1,38).

A penitência realiza-se quotidianamente e sem a necessidade de fazer grandes sacrifícios. Com ela, são oferecidos a Cristo aqueles momentos que originam desânimo no passar do dia e se aceita com humildade, gozo e alegria, todas as adversidades que vamos vivendo.

Da mesma forma, a caridade é um saber renunciar a certas coisas legítimas que nos ajuda a viver o desapego e desprendimento diante das coisas deste mundo.

Sobre esta prática, São João Paulo II explica que este chamamento a dar “está enraizado no mais profundo do coração humano: toda a pessoa sente o desejo de colocar-se em contato com os outros e realiza-se plenamente quando se dá livremente aos outros”.

 

A Quaresma começa com a Quarta-feira de Cinzas e termina na Quinta-feira Santa

 

Na Quarta-feira de Cinzas começam os 40 dias de preparação para a Páscoa. A Quaresma termina na Quinta-feira Santa. Nesse dia, a Igreja recorda a Última Ceia do Senhor, quando Jesus de Nazaré compartilhou a refeição pela última vez com seus apóstolos antes de ser crucificado na Sexta-feira Santa.

 Os 40 dias da Quaresma representam o mesmo número de dias que Jesus passou no deserto antes de começar sua vida pública, os quarenta dias do dilúvio, os quarenta dias da marcha do povo judeu pelo deserto, os quarenta dias de Moisés e Elias na montanha.

Na Quaresma, a cor litúrgica é o roxo

 

A cor litúrgica deste tempo é o roxo, que significa luto e penitência. É um tempo de reflexão, penitência, conversão espiritual; tempo para preparar o mistério pascal.

Santos Francisco e Jacinta Marto

Francisco de 9 anos  e Jacinta Marto de 7 anos, irmãos, residentes nos Valinhos,  Aljustrel, concelho de Ourém, eram crianças iguais a tantos outros meninos e meninas do seu tempo. Pequenos, rudes e humildes instrumentos de que Maria se serve para convidar os homens a porem a sua confiança em Deus, a converterem-se e a empreenderem o caminho do bem.

Os pequenos videntes recebem um carisma mariano. Mariano porque é concedido através de Maria. Como nos disse o Papa João Paulo II na homilia da Beatificação dos Pastorinhos: “A Senhora fala-lhes com voz e coração de mãe. Convida-os a oferecerem-se como vítimas de reparação, oferecendo-se ela para os conduzir seguros até Deus.” E faz deles candeias que Deus acendeu para iluminar a humanidade nas suas horas sombrias e inquietas”.

Na altura em que os pastorinhos viveram, o mundo estava amargurado pela guerra, que semeava violência, sofrimento e morte; pela pneumónica que dizimava muitas vidas; um mundo onde a tecnologia e a ciência davam a crer segurança, liberdade, desenvolvimento e felicidade. Um mundo em que dispensava o recurso a Deus para obter soluções para os problemas da sociedade, em que a Igreja era humilhada, amedrontada e reduzida nas suas possibilidades de ação e expressão.

Olhando para este panorama atual mundial e nacional, poderíamos perguntar: o que nos separa daquele tempo?

Na “escola” de Maria as três crianças fazem uma extraordinária aprendizagem daquilo que é o amor a Deus , a Jesus, a Maria e à humanidade. Que os leva a responder, “Sim queremos”, quando Nossa Senhora pergunta: “Quereis oferecer-vos a Deus para suportar todos os sofrimentos que Ele quiser enviar-vos, em ato de reparação pelos pecados com que Ele é ofendido e de súplica pela conversão dos pecadores?”. A conversão dos pecadores e a obtenção da paz para o mundo são os primeiros fins pelos quais os pequenos videntes, intercedem, mediante orações e sacrifícios, tudo por amor.

Francisco Marto morre a 04 de abril de 1919.

Jacinta Marto morre a 20 de Fevereiro de 1920.

Foram ambos beatificados a 13 de maio de 2000, numa celebração presidida pelo Papa João Paulo II em Fátima, e, canonizados a 13 de maio de 2017 (cem anos das aparições) em celebração presidida pelo Papa Francisco em Fátima: "Declaramos e definimos como santos os beatos Francisco Marto e Jacinta Marto".

Que os Santos Pastorinhos continuem a interceder por toda a humanidade junto de Deus: “Francisco e Jacinta Marto, rogai por nós!”

Nota histórica sobre a "A festa das cinco chagas de Cristo"

Durante a época medieval, particularmente nos séculos XII e XIII, cresceu por toda a Europa a devoção às Chagas de Cristo – não só às chagas da flagelação e da coroação de espinhos mas, particularmente, às Chagas que abriram os cravos nas mãos e pés do Senhor e à Chaga que Lhe abriu, no lado, o soldado romano.

A pregação de S. Bernardo de Claraval e de S. Francisco de Assis contribuíram, em muito, para que essa devoção se difundisse entre o povo cristão.

Também a abertura dos Lugares Santos, devida à ação dos Cruzados, permitiu a realização de peregrinações a esses locais onde Cristo tinha pregado, feito milagres e sofrido a sua Paixão.

A devoção à Humanidade de Cristo – e, sobretudo de Cristo sofredor – ia-se, pouco a pouco, enraizando na Cristandade e cristalizando em orações, algumas atribuídas a Santa Clara de Assis, a Santa Matilde de Hackeborn ou a Santa Gertrudes de Helfta.

Em Portugal, a devoção às Cinco Chagas de Cristo manifestou-se desde cedo, reportando-se aos inícios da nacionalidade, sobretudo por mão dos beneditinos. Mas será somente a partir dos séculos XV e XVI que essa devoção será claramente associada à própria fundação do Reino de Portugal e ao seu brasão de armas.

Com efeito, nalguns textos da época[1], relata-se a aparição de Cristo crucificado a D. Afonso Henriques, na véspera da Batalha de Ourique, na qual as suas tropas defrontariam os exércitos infiéis, liderados por cinco reis mouros: «Afonso, antes de dar sinal aos soldados, estando ajoelhado a orar, viu o Salvador pendente da Cruz. Era tal a confiança do ânimo real, tal a fé gravada no seu coração que, longe de perturbar-se com tão estupendo milagre, ousou dizer estas palavras: que não era ao homem que crê firmemente que Jesus devia mostrar-se, mas aos hereges e apartados dessa fé ou a ela contrários é que era preciso mostrar-se dessa forma»[2]. Mas Cristo afiançou àquele que seria o primeiro Rei de Portugal: «Não te apareci deste modo para acrecentar tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito e fundar os princípios do teu Reyno sobre pedra firme»[3]. E assim, tendo vencido a batalha de Ourique, quis D. Afonso Henriques que constassem no seu escudo as armas que ostentaram todos os reis portugueses e que ostenta, atualmente, a bandeira de Portugal: Cinco Quinas, em honra das Cinco Chagas de Cristo e como representação dos cinco reis mouros vencidos.

Deste modo, poder-se-á dizer que é a partir do século XVI que o momento da fundação do reino, simultaneamente acontecimento militar e sobrenatural, se incorpora na memória oficial de Portugal.

Nos círculos cultos, esta memória é amplamente difundida, manifestando-se através da arte e da literatura. Grandes nomes como Nicolau Chanterene, na escultura ou, já no âmbito da literatura, Sá de Miranda, Gil Vicente, João de Barros, André de Resende ou Luís de Camões, entre outros, fazem eco desta tradição entre a sociedade portuguesa.

Também no âmbito público, o milagre de Ourique e as Cinco Chagas são referidos, como aconteceu na oração fúnebre das exéquias de D. João III ou na pregação da bênção da bandeira feita aquando da partida de D. António, Prior do Crato, para Tânger, em 1574.

Já no século XVII, a necessidade de legitimação da autonomia de Portugal, levará ao aparecimento de textos que justifiquem e demonstrem o destino único e independente de Portugal. O chamado “juramento de Afonso Henriques”, pretensamente descoberto no Mosteiro de Alcobaça, afirmará que Portugal nasceu por vontade expressa de Deus, num juramento feito por Cristo aparecido ao próprio Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo, imperium mihi stabilire! – seria uma promessa feita ao primeiro Rei de Portugal, de um Império cristão – um chamamento à vocação missionária de Portugal.

Se, por um lado, o episódio de Ourique e o aparecimento de Cristo a Afonso Henriques serviram para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade, é também verdade que contribuíram para que arreigasse profundamente, no povo português, a devoção às Chagas de Cristo.

Este terá sido um dos motivos que levou a que, já no século XVIII, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António de Almeida, pedisse ao Papa Bento XIV, a concessão da celebração do Ofício e Missa das Cinco Chagas. Além disso, solicitou ainda a concessão de um aditamento ao Ofício, na versão especialmente destinada a Portugal, de um texto que faria referência ao aparecimento de Cristo a Afonso Henriques, explicitando a relação entre o milagre de Ourique e a inscrição das Cinco Chagas no brasão de Portugal. Em 1753, tanto o Ofício como o aditamento foram aprovados e concedidos pelo Santo Padre.

Apesar de no século XIX, fruto do espírito positivista, terem surgido várias opiniões contrariando a tradição da intervenção sobrenatural em Ourique, o facto é que a devoção às Cinco Chagas e a sua ligação à história de Portugal permaneceram intactas.

Tal era a força dessa devoção que, mesmo no princípio do século XX, com a implantação da República, profundamente anticristã na época, não se retiraram da bandeira nacional, então alterada, as Quinas, sinal das Cinco Chagas de Cristo.

Ainda hoje, no dia 7 de fevereiro, se celebra em Portugal, com profunda e especial devoção, a Festa das Cinco Chagas, honrando a Humanidade de Cristo e lembrando a promessa que Cristo teria feito a Afonso Henriques: a fundação de Portugal.

Cristina Brás Agostinho

Notas

  1. A referência ao milagre de Ourique aparece, entre outros documentos, no século XV, na “segunda Chronica breve de Santa Cruz de Coimbra” (1451), na “Oração de Obediência” de Vasco Fernandes de Lucena (1485), embaixador de D. João II ao Papa Inocêncio VIII e, já fora de Portugal, nas “Mémoires touchant les souveraines maisons pour la plupart D’Autriche, Bourgogne et France”, iniciadas em 1491, por Olivier de la Marche.

  2. Martim de Albuquerque, Orações de obediência. Séculos XV a XVII, vol. 3, Lisboa, Ed. Inapa, 1988 (edição fac-similada com tradução de Miguel Pinto de Menezes)

  3. Frei António Brandão, Monarchia Lusitana. III Parte, Livro X, Cap. V, fol.128v

Mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial do Doente - 11 fevereiro 2023

Queridos irmãos e irmãs

A doença faz parte da nossa experiência humana. Mas pode tornar-se desumana, se for vivida no isolamento e no abandono, se não for acompanhada pelo cuidado e pela compaixão. Quando caminhamos juntos é normal que alguém se possa sentir mal, que tenha de parar por causa do cansaço ou por alguma dificuldade no percurso. É exatamente nesses momentos que se vê como estamos a caminhar: se caminhamos verdadeiramente juntos ou vamos pela mesma estrada, mas cada um por sua conta, dando atenção aos seus próprios interesses e deixando que os outros “se arranjem”. Por isso, neste XXXI Dia Mundial do Doente e em pleno percurso sinodal, convido-vos a refletir sobre o facto de podermos aprender, precisamente através da experiência da fragilidade e da doença, a caminhar juntos segundo o estilo de Deus que é proximidade, compaixão e ternura.

No livro do profeta Ezequiel, num grande oráculo que constitui um dos pontos culminantes de toda a Revelação, o Senhor diz-nos: «Sou Eu que apascentarei as minhas ovelhas, sou Eu quem as fará descansar – oráculo do Senhor Deus. Procurarei aquela que se tinha perdido, reconduzirei a que se tinha tresmalhado; cuidarei da que está ferida e tratarei da que está doente. […] A todas apascentarei com justiça» (34,15-16). Naturalmente as experiências de estarmos perdidos, doentes ou frágeis fazem parte do nosso caminho: não nos excluem do povo de Deus. Pelo contrário, colocam-nos no centro da solicitude do Senhor que é Pai e não quer perder pelo caminho nem sequer um dos seus filhos. Trata-se, pois, de aprender com Ele a ser verdadeiramente uma comunidade que caminha em conjunto, capaz de não se deixar contagiar pela cultura do descarte.

A encíclica Fratelli tutti, como sabem, propõe uma leitura atualizada da parábola do Bom Samaritano (cf. n. 56). Escolhi-a como charneira, como ponto de viragem para se poder sair das «sombras dum mundo fechado» (cap. I) e «pensar e gerar um mundo aberto» (cap. III). Com efeito, há uma profunda conexão entre esta parábola de Jesus e as múltiplas formas em que hoje é negada a fraternidade. De modo particular, no facto de a pessoa espancada e roubada acabar abandonada na estrada, podemos ver representada a condição em que são deixados tantos irmãos e irmãs nossos na hora em que mais precisam de ajuda. Distinguir quais os atentados à vida e à sua dignidade que provêm de causas naturais e quais são aqueles que são provocados por injustiças e violências… não é fácil. Na realidade, o nível das desigualdades e a prevalência dos interesses de poucos já incidem de tal modo sobre cada ambiente humano que é difícil considerar “natural” qualquer experiência. Um sofrimento realiza-se sempre numa “cultura” e nas suas contradições.

O que importa, no entanto, é reconhecer a condição de solidão, de abandono. Trata-se duma atrocidade que pode ser superada antes de qualquer outra injustiça, porque para a eliminar – como conta a parábola – basta um momento de atenção, o movimento interior da compaixão. Dois viajantes, considerados religiosos, veem o ferido e não param. Mas o terceiro, um samaritano, alguém que é desprezado, deixa-se mover pela compaixão e cuida daquele estranho à beira do caminho e trata-o como irmão. Procedendo deste modo, sem pensar sequer, muda as coisas, gera um mundo mais fraterno.

Irmãos, irmãs, nunca estamos preparados para a doença. E muitas vezes nem sequer para admitir que avançamos na idade. Tememos a vulnerabilidade e a difusa cultura do mercado leva-nos a negá-la. Não há espaço para a fragilidade. E assim o mal, quando irrompe e nos ataca, deixa-nos por terra, atordoados. Então pode acontecer que os outros nos abandonem ou que nos pareça a nós que devemos abandoná-los a fim de não nos sentirem como um peso para eles. Começa assim a solidão e envenena-nos a sensação amarga de uma injustiça, devido à qual até nos parece que o Céu se fecha. Na realidade, sentimos dificuldade de permanecer em paz com Deus, quando se desfaz a relação com os outros e com nós próprios. Por isso é mesmo importante, relativamente também à doença, que toda a Igreja se confronte com o exemplo evangélico do bom samaritano, para se tornar um “hospital de campanha” válido: a sua missão, com efeito, especialmente nas circunstâncias históricas que atravessamos, exprime-se no exercício do cuidado. Todos somos frágeis e vulneráveis; todos temos necessidade daquela atenção compassiva que sabe deter-se e aproximar-se, que sabe cuidar e levantar. A condição dos enfermos é, assim, um apelo que quebra a indiferença e abranda o passo de quem avança como se não tivesse irmãs e irmãos.

De facto, o Dia Mundial do Doente não convida apenas à oração e à proximidade com aqueles que sofrem, mas, ao mesmo tempo, visa sensibilizar o povo de Deus, as instituições de saúde e a sociedade civil para uma nova forma de avançarmos juntos. A profecia de Ezequiel, já referida atrás, contém um juízo muito duro sobre as prioridades daqueles que exercem, sobre o povo, o poder económico, cultural e governamental: «Vós bebestes o leite, vestistes-vos com a sua lã, matastes as reses mais gordas e não apascentastes as ovelhas. Não tratastes das que eram fracas, não cuidastes da que estava doente, não curastes a que estava ferida; não reconduzistes a transviada; não procurastes a que se tinha perdido, mas a todas tratastes com violência e dureza» (34,3-4). A Palavra de Deus – não só na denúncia, mas também na proposta – é sempre capaz de iluminar, é sempre atual. Na realidade, a conclusão da parábola do Bom Samaritano sugere-nos como a prática da fraternidade, que começou por um encontro tu a tu, se pode alargar para um cuidado organizado. A estalagem, o estalajadeiro, o dinheiro, a promessa de se manterem mutuamente informados (cf. Lc 10,34-35): tudo isto faz pensar no ministério dos sacerdotes, no trabalho dos agentes de saúde e dos agentes sociais, no empenho de familiares e de voluntários, graças aos quais em cada dia, em todo o mundo, o bem se opõe ao mal.

Os anos da pandemia aumentaram o nosso sentimento de gratidão por quem diariamente trabalha em prol da saúde e da investigação. Mas, ao sair de uma tragédia coletiva assim tão grande, não é suficiente louvar os heróis. A Covid-19 pôs à prova esta grande rede de competências e de solidariedade e mostrou os limites estruturais dos sistemas de assistência social existentes. Por isso, é necessário que a gratidão seja acompanhada, em cada país, pela busca ativa de estratégias e recursos a fim de serem garantidos a todo o ser humano o acesso aos cuidados e o direito fundamental à saúde.

«Trata bem dele» (Lc 10,35) é a recomendação do samaritano ao estalajadeiro. Mas Jesus repete-a igualmente a cada um de nós na exortação conclusiva: «Vai e faz tu também o mesmo». Como evidenciei na encíclica Fratelli tutti, «a parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum» (n. 67). Efetivamente «fomos criados para a plenitude que só se alcança no amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível» (n. 68).

No dia 11 de fevereiro de 2023 olhamos para o Santuário de Lurdes como uma profecia, uma lição confiada à Igreja em plena modernidade. Não tem valor só aquilo que funciona; não conta só quem produz. As pessoas doentes estão no âmago do povo de Deus, que avança juntamente com elas como profecia duma humanidade onde cada pessoa é preciosa e ninguém deve ser descartado.

À intercessão de Maria, Saúde dos Enfermos, confio cada um de vós, que estais doentes; vós que cuidais deles em família, com o trabalho, a investigação e o voluntariado; e vós que vos esforçais por tecer laços pessoais, eclesiais e civis de fraternidade. A todos envio de coração a minha Bênção Apostólica.

Roma, São João de Latrão, 10 de janeiro de 2023.

FRANCISCO

Senhora das Candeias ou Apresentação do Senhor?

A nossa tradição fala sobretudo na Senhora das Candeias, mas a liturgia celebra a Apresentação do Senhor, ambas andam de mão dada pela nossa história, partilhamos um texto que ajuda a esclarecer.

No dia 02 de Fevereiro de 2023 começaremos a missa das 19h na rua, para uma pequenina procissão de entrada.

Celebrada no dia 2 de fevereiro, data em que a Igreja faz memória da Festa Litúrgica da Apresentação do Senhor, Nossa Senhora das Candeias, da Luz, da Purificação ou da Candelária - todos estes títulos designam a mesma Nossa Senhora -, tem sua história e vínculo a partir da purificação de Nossa Senhora e Apresentação do Menino Jesus no Templo, quarenta dias após o seu nascimento. Além disso, outras narrações relatam suas origens, como a lenda das Ilhas das Canárias e também a partir da devoção popular.

Segundo a tradição mosaica, após o parto, as parturientes eram consideradas impuras e deveriam ir ao Templo, quarenta dias após o nascimento de seus filhos, para se apresentarem ao Sumo-Sacerdote e oferecer seus sacrifícios. Sendo assim, após o nascimento de Jesus, Maria e José se dirigiram até Simeão para cumprir este preceito. Assim nasceu a Festa da Apresentação de Jesus no Templo e também a Festa da Purificação de Nossa Senhora.

Sobre a origem e aparição de Nossa Senhora das Candeias, encontram-se no livro "Maria, uma Mãe, muitos títulos", do Pe. José Battisti, palotino, relatos que explicam a aparição de Nossa Senhora nas Ilhas das Canárias, Espanha. Lê-se que dois pastores guardavam costumeiramente seus animais perto de uma caverna de Tenerife, Ilhas Canárias, e em um determinado dia observaram que os animais se recusaram a entrar no local. Os pastores, então, aproximaram-se da gruta e descobriram a imagem de uma Senhora com um filho no colo. O fato se espalhou pela região e o povo foi averiguar para validar o fato. Chegando lá, encontraram numerosas candeias sustentadas por seres invisíveis que, com seus cânticos, louvavam a Deus e à Virgem Maria. Por isso, Maria ganhou o título de Candelária, por causa das velas que iluminavam a imagem. Já o nome “candeias” faz referência à chama da vela que, simbolicamente, apresenta Jesus Cristo ao mundo. É por isso que as imagens devocionais ilustram Maria segurando o Menino Jesus ao colo.

Pela devoção popular, nos primórdios do cristianismo, a festividade de Nossa Senhora era denominada "das Candeias" porque comemorava-se o trajeto de Maria até o Templo, com uma procissão, na qual os devotos portavam velas acesas durante o trajeto. A procissão dos luzeiros é proveniente de um antigo costume dos romanos. Como a festividade era celebrada sempre no dia 2 de fevereiro, data em que os cristãos comemoravam a Purificação de Maria, o Papa Gelásio I (492-496) instituiu um solene cortejo noturno em homenagem à Mãe Santíssima, convidando o povo a participar com círios e velas acesas e cantar hinos em louvor a Nossa Senhora. Esta celebração propagou-se por toda a Igreja Romana e, em 542, Justiniano I instituiu-a no Império do Oriente após ter cessado uma peste. Mas as festas religiosas começaram a ser celebradas com procissão de velas a partir do século X, um pouco mais tarde, mas que fazem memória e celebram a fé em Maria e no seu Filho Jesus.

A partir destes fatos, pode-se afirmar teologicamente que Jesus é Aquele cuja luz clarifica todos os povos e todas as gentes. Então, Nossa Senhora das Candeias, pode ser também a Nossa Senhora da Luz, pois ambas apresentam Jesus, a Luz das nações. Nossa Senhora é portadora da luz que é Jesus. Todos os cristãos são convidados a receber essa luz e multiplicar as ‘grandes maravilhas’ operadas em Maria pelo Senhor. Assim como Jesus foi luz de todas as nações, todos os discípulos seus, no cotidiano da vida podem ser também a luz do Senhor.

Frei Augusto Luiz Gabriel, OFM

Conto de Natal 2022

Aproximava-se o Natal e a inspiração não vinha.

Desde há mais de dez anos que em cada Natal escrevia um Conto que, volta e meia, relia e se espantava como tinha tido tal inspiração.

A verdade é que, normalmente, quando se aproximava o Natal, numa qualquer madrugada acordava às seis ou sete da manhã, (o que tantas vezes lhe acontecia), e, sem perceber como ou porquê, a história para o Conto surgia no seu coração, no seu pensamento.

Depois era só escrever, mais tarde, e ao tempo que escrevia iam surgindo as frases encadeadas.

Mas este ano, nada!

O tempo estava a acabar e nem uma “luzinha” sequer de uma qualquer ideia para o seu Conto de Natal de 2022.

Percorria na memória cenas bíblicas, histórias passadas, episódios natalícios, mas nada, nenhum desses pensamentos lhe transmitia aquela “segurança” que costumava sentir quando lhe vinha ao coração e ao pensamento a trave mestra de cada Conto de Natal.

Bem, pensou ele, chegou ao fim este ciclo de Contos de Natal.

Acabaram-se as ideias, acabaram-se as razões, ou, simplesmente, haverá outro modo de escrever sobre o Natal, porque a escrita para ele, era um contínuo processo em que as palavras iam aparecendo conforme escrevia.

“Arrumou” os pensamentos na “gaveta mental” dos Contos de Natal e decidiu procurar outro modo de escrever o Natal.

Naquela madrugada de 24 de Dezembro, mais uma vez, acordou às seis da manhã.

Seria para rezar, certamente, porque o Conto de Natal já estava “arrumado” na memória.

Foi então que ouviu dentro de si uma voz que lhe dizia.

Queres um Conto de Natal, Joaquim?

Ficou em silêncio com receio que aquele momento acabasse de repente, mas no seu coração apenas dizia sim, mil vezes sim.

Novamente ouviu, ou sentiu, no seu coração aquela voz que lhe disse:

Pois bem o teu Conto de Natal este ano, Joaquim, sou Eu!

És Tu, Senhor? - Perguntou sem perceber.

Sim, Joaquim, sou Eu!

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que sofrem.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que nada têm.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão doentes.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão presos.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão em guerra.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão abandonados.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão desesperados.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão sós.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que são perseguidos.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que são ofendidos.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que estão traumatizados.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que não têm esperança.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que não têm amor.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que Me afastam.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que não acreditam.

O teu Conto de Natal este ano sou Eu naqueles que cantam, apesar de todas as dificuldades, «glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade.»

Abriu os olhos, sorriu, e disse numa prece do seu coração:

Que lindo Conto de Natal, Senhor! Só podia ser escrito por Ti!

Joaquim M. Alves
Natal do Senhor, 2022