Nota histórica sobre a "A festa das cinco chagas de Cristo"

Durante a época medieval, particularmente nos séculos XII e XIII, cresceu por toda a Europa a devoção às Chagas de Cristo – não só às chagas da flagelação e da coroação de espinhos mas, particularmente, às Chagas que abriram os cravos nas mãos e pés do Senhor e à Chaga que Lhe abriu, no lado, o soldado romano.

A pregação de S. Bernardo de Claraval e de S. Francisco de Assis contribuíram, em muito, para que essa devoção se difundisse entre o povo cristão.

Também a abertura dos Lugares Santos, devida à ação dos Cruzados, permitiu a realização de peregrinações a esses locais onde Cristo tinha pregado, feito milagres e sofrido a sua Paixão.

A devoção à Humanidade de Cristo – e, sobretudo de Cristo sofredor – ia-se, pouco a pouco, enraizando na Cristandade e cristalizando em orações, algumas atribuídas a Santa Clara de Assis, a Santa Matilde de Hackeborn ou a Santa Gertrudes de Helfta.

Em Portugal, a devoção às Cinco Chagas de Cristo manifestou-se desde cedo, reportando-se aos inícios da nacionalidade, sobretudo por mão dos beneditinos. Mas será somente a partir dos séculos XV e XVI que essa devoção será claramente associada à própria fundação do Reino de Portugal e ao seu brasão de armas.

Com efeito, nalguns textos da época[1], relata-se a aparição de Cristo crucificado a D. Afonso Henriques, na véspera da Batalha de Ourique, na qual as suas tropas defrontariam os exércitos infiéis, liderados por cinco reis mouros: «Afonso, antes de dar sinal aos soldados, estando ajoelhado a orar, viu o Salvador pendente da Cruz. Era tal a confiança do ânimo real, tal a fé gravada no seu coração que, longe de perturbar-se com tão estupendo milagre, ousou dizer estas palavras: que não era ao homem que crê firmemente que Jesus devia mostrar-se, mas aos hereges e apartados dessa fé ou a ela contrários é que era preciso mostrar-se dessa forma»[2]. Mas Cristo afiançou àquele que seria o primeiro Rei de Portugal: «Não te apareci deste modo para acrecentar tua fé, mas para fortalecer teu coração neste conflito e fundar os princípios do teu Reyno sobre pedra firme»[3]. E assim, tendo vencido a batalha de Ourique, quis D. Afonso Henriques que constassem no seu escudo as armas que ostentaram todos os reis portugueses e que ostenta, atualmente, a bandeira de Portugal: Cinco Quinas, em honra das Cinco Chagas de Cristo e como representação dos cinco reis mouros vencidos.

Deste modo, poder-se-á dizer que é a partir do século XVI que o momento da fundação do reino, simultaneamente acontecimento militar e sobrenatural, se incorpora na memória oficial de Portugal.

Nos círculos cultos, esta memória é amplamente difundida, manifestando-se através da arte e da literatura. Grandes nomes como Nicolau Chanterene, na escultura ou, já no âmbito da literatura, Sá de Miranda, Gil Vicente, João de Barros, André de Resende ou Luís de Camões, entre outros, fazem eco desta tradição entre a sociedade portuguesa.

Também no âmbito público, o milagre de Ourique e as Cinco Chagas são referidos, como aconteceu na oração fúnebre das exéquias de D. João III ou na pregação da bênção da bandeira feita aquando da partida de D. António, Prior do Crato, para Tânger, em 1574.

Já no século XVII, a necessidade de legitimação da autonomia de Portugal, levará ao aparecimento de textos que justifiquem e demonstrem o destino único e independente de Portugal. O chamado “juramento de Afonso Henriques”, pretensamente descoberto no Mosteiro de Alcobaça, afirmará que Portugal nasceu por vontade expressa de Deus, num juramento feito por Cristo aparecido ao próprio Afonso Henriques: Volo in te et in semine tuo, imperium mihi stabilire! – seria uma promessa feita ao primeiro Rei de Portugal, de um Império cristão – um chamamento à vocação missionária de Portugal.

Se, por um lado, o episódio de Ourique e o aparecimento de Cristo a Afonso Henriques serviram para o fortalecimento do sentimento de nacionalidade, é também verdade que contribuíram para que arreigasse profundamente, no povo português, a devoção às Chagas de Cristo.

Este terá sido um dos motivos que levou a que, já no século XVIII, o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. António de Almeida, pedisse ao Papa Bento XIV, a concessão da celebração do Ofício e Missa das Cinco Chagas. Além disso, solicitou ainda a concessão de um aditamento ao Ofício, na versão especialmente destinada a Portugal, de um texto que faria referência ao aparecimento de Cristo a Afonso Henriques, explicitando a relação entre o milagre de Ourique e a inscrição das Cinco Chagas no brasão de Portugal. Em 1753, tanto o Ofício como o aditamento foram aprovados e concedidos pelo Santo Padre.

Apesar de no século XIX, fruto do espírito positivista, terem surgido várias opiniões contrariando a tradição da intervenção sobrenatural em Ourique, o facto é que a devoção às Cinco Chagas e a sua ligação à história de Portugal permaneceram intactas.

Tal era a força dessa devoção que, mesmo no princípio do século XX, com a implantação da República, profundamente anticristã na época, não se retiraram da bandeira nacional, então alterada, as Quinas, sinal das Cinco Chagas de Cristo.

Ainda hoje, no dia 7 de fevereiro, se celebra em Portugal, com profunda e especial devoção, a Festa das Cinco Chagas, honrando a Humanidade de Cristo e lembrando a promessa que Cristo teria feito a Afonso Henriques: a fundação de Portugal.

Cristina Brás Agostinho

Notas

  1. A referência ao milagre de Ourique aparece, entre outros documentos, no século XV, na “segunda Chronica breve de Santa Cruz de Coimbra” (1451), na “Oração de Obediência” de Vasco Fernandes de Lucena (1485), embaixador de D. João II ao Papa Inocêncio VIII e, já fora de Portugal, nas “Mémoires touchant les souveraines maisons pour la plupart D’Autriche, Bourgogne et France”, iniciadas em 1491, por Olivier de la Marche.

  2. Martim de Albuquerque, Orações de obediência. Séculos XV a XVII, vol. 3, Lisboa, Ed. Inapa, 1988 (edição fac-similada com tradução de Miguel Pinto de Menezes)

  3. Frei António Brandão, Monarchia Lusitana. III Parte, Livro X, Cap. V, fol.128v